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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

A DIVINA INVEJA

L. do D.

A DIVINA INVEJA

Sempre que tenho uma sensação agradável cm companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo.

A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.

A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazem-me notar como seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.

Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a tomá-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.

Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquitecto muito mais.

Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar. O meu triunfo máximo no género foi quando, a cena hora ambígua de aspecto e luz olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura a abominável terceira dimensão.

E a hora cheira-me verdadeiramente a um ruído [...] e longínquo e com uma grande inveja de realidade...

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

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"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.