Mesmo que eu quisesse criar,
L. do D.
Mesmo que eu quisesse criar, (...)
A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.
Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma demonstração matemática.
O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.
A arte é uma ciência...
Sofre ritmicamente.
Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela ou há-de morrer às mãos dela ou secar.
Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensíveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.
Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente que me alegre ou me interesse, em sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente, ou possa ter outro passado que esse passado — jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.
Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que crêem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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