INTERVALO [c]
INTERVALO
Que faz cada um neste mundo, que o perturbe ou o altere? Cada homem que vale, que outro homem não valha? Valem os homens vulgares uns pelos outros, os homens de acção pela força que interpretam, os homens do pensamento por o que criaram...
O que criaste para a humanidade, está à mercê do esfriamento da Terra. O que deste aos pósteres, ou é cheio de ti, e ninguém o entenderá, ou da tua época, e as outras épocas não o entenderão, ou têm apelo para todas as épocas e não o entenderá o abismo final, em que todas as épocas se precipitam.
Fazemos, formulamos, gestos na sombra. Por detrás de nós o Mistério nos (…)
Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morremos logo que nascemos, outros vivemos um pouco, na memória dos outros, fora da mesma da acção que os teve; alguns alcançamos a memória das civilizações que os possui; raros abrangem de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes... Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some, a todos como a fome do abismo, que (...)
O perene é um Desejo, e o eterno ilusão.
Morte somos e morte vivemos. Mortos nascemos, mortos passamos; mortos já, entramos na Morte.
Tudo quanto vive, vive porque muda, muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente — se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.
A vida é pois um intervalo, um nexo, uma relação, mas uma relação entre o que passou, o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte.
A inteligência, ficção de superfície e do descaminho.
A vida da matéria ou é puro sonho, ou mero jogo atómico, que desconhece as conclusões da nossa inteligência e os motivos da nossa emoção. Assim a essência da vida é um elo, ou aparência, e ou é só ser ou não ser, e a ilusão e aparência de nada ser, tem que ser não-ser, a vida é a morte.
Vão o esforço que construa com os olhos na ilusão de não morrer! «Poema eterno», dizemos nós; «palavras que nunca morrerão». Mas o esfriamento material da terra levará não só os vivos que a cobrem como (…)
Um Homero ou um Milton não podem mais que um cometa que bata na terra.
Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.
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