Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade;
Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe, tão somente, a inteligência que teve dessa sensibilidade; pela emoção somos nós, pela inteligência alheios. A inteligência dispersa-nos; porém é pelo que nos dispersa que nos sobrevivemos porque é por o que não é que nós viveremos fora de nós.
Um deus, no sentido pagão, não é mais que a inteligência que um ente tem de si mesmo, pois essa inteligência que tem de si mesmo, é a forma ideal ou estranha que ele tem. Formando de nós um conceito intelectual, formamos um deus de nós mesmos.
Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrem de fora e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é vida e a morte morte; pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro — tanto que é o lado de fora que se vê, e o lado de dentro o que não há.
O seguimento de uma coisa, por exemplo, de um propósito, é paralelo a ele. Na vida, nada segue a não ser ao lado. Não há seguimento que não seja um simples acompanhamento. Coexistir quer dizer existir ao lado. Falar é coexistir consigo mesmo.
O homem que galgou o muro, tinha um muro que galgar.
Fingir é descobrir-se.
Deitar-se é levantar-se de não ter ido para a cama.
Ter razão é não saber quais são as emoções que se têm.
O homem que descobriu a liberdade voltou para casa e fechou-se na cama.
Ser é abdicar.
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela, toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas os cavaleiros seriam peões. O lugar forma a localidade. Estar é ser.
Uma porta tem dois lados — aquele para onde se abre, e aquele de onde se abre. O espaço aberto da porta é igual para ambos os lados. Para um lado, incomoda, para o outro só deixa ver. Do lado que incomoda é que se pode esconder alguém. Fingir é conhecer-se.
Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.
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