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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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António Mora

Com o assédio e a decadência da religião cristista,

Com o assédio e a decadência da religião cristista, com o enfraquecimento, sobretudo, do seu poder nos espíritos e do seu valor nas avaliações da vida social, que progressivamente se revela na época que é costume datar, por conveniência de nitidez, desde a Revolução da França, e hoje está vigente, aconteceu que muitos espíritos tentaram, consoante lhes era possível, reconstruir o sentimento pagão. A maioria, é certo, levada por considerações por um lado promanantes do estado social criado pelo acréscimo das indústrias e o aumento consequente do proletariado mais culto, por outro lado filhas do passageiro prestígio que o estreito materialismo científico, de moda no século passado, criou, foi levada, ao sair do cristianismo e por não poder, pela fatalidade do espírito humano, sair do feitio religioso, a conceber e congregar-se em torno a ideais de natureza religiosa, mas despidos do cunho espiritual, quase sempre extra-terrestre também, que a filosofia do século impunha. Assim se formaram as correntes socialista, sindicalista e anarquista no pensamento dinâmico da época.

Mas, fora dessa maioria, aqueles espíritos cultos para quem a antiguidade pagã não era coisa ignorada, acolheram-se à sua sombra benigna, e tentaram, de uma maneira ou de outra, reconstruir em si o paganismo morto. Dir-se-ia que a tentativa não passava de um entretimento de escoliastas ou de eruditos se o facto se não [desse] de no cristianismo, e sobretudo no cristianismo católico, estarem incluídos fortes elementos pagãos.

O cristismo apresenta-se-nos composto de três elementos — o sentimento cristista propriamente tal, o elemento pagão contido na presença daqueles santos que todos hoje sabemos serem apenas sucessores deformados dos deuses, e aquele elemento propriamente religioso que todas as religiões contêm.

Com a dissolução recente do sentimento cristão, cindiu-se o cristismo nos seus elementos que seguiram, para fora dele, com vário rumo. O sentimento cristão propriamente tal — a compassividade, a fraqueza, a baixeza democrática de visão — continuou, despido dos atributos religiosos, nas doutrinas chamadas da Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade é lema que podia ser do cristismo, se o cristismo não tivesse a mais o elemento sobrenatural típico de tudo quanto seja religião. Este mesmo sentimento aliado já ao religioso, motivou as várias «broad churches» e «low churches», dissidências várias, e sobretudo as várias formas aproximadas de socialismo cristão que têm surgido não há muito.

O sentimento do sobrenatural, liberto propriamente do sentimentalismo cristista, veio a dar na renascença do ocultismo, patente hoje por todo o orbe. Certas escolas do ocultismo — como a Sociedade Teosófica, que é, ostensivamente, a mais forte — não abandonaram, é certo, o sentimento cristista no seu intuito fraternitário. Mas o facto é que a renascença ocultista, como tal, se apoia não directamente no humanitarismo cristista, mas sim na pura revivescência da noção do sobrenatural, sem outros atributos ou elementos anexos.

Três erros têm sido cometidos com respeito à interpretação do paganismo. Tem-se confundido a mitologia pagã com o espírito do paganismo; tem-se confundido o espírito pagão com determinados resultados da especulação ética dentro do paganismo. E tem-se confundido determinados elementos racialmente ou climaticamente característicos dos povos da Hélade e de Roma com o espírito do paganismo. Várias tentativas, exclusivamente eruditas, de determinar qual houvesse sido o espírito pagão, propriamente tal, têm falhado, não só por incompletas, como por lhes faltar a intuição directa do que era esse espírito, por aos seus estudiosos faltar, como é natural, o espírito pagão, por eles, em suma, não terem nascido pagãos.

A pluralidade dos deuses é, com efeito, um dos característicos do paganismo. Mas cumpre entender qual o sentido que subjaz essa pluralidade, cumpre ver qual o espírito que a anima. E para isso é preciso ter presentes três coisas: que acima dos deuses, no sistema pagão, paira sempre o Ananke, o Fatum, incorpóreo, submetendo os deuses como os homens aos seus decretos inexplicados; que os deuses se destacam dos homens e lhes são superiores por uma questão de grau, que não de ordem, que eles são antes homens aperfeiçoados, ou perfeitos, homens maiores, por assim dizer, do que homens diferentes ou ultra-homens; que um arbítrio absoluto e não uma razão de ordem moral — qual a intervenção de Cristo pelos seus, ou os aparecimentos da Virgem aos seus merecidos pela virtude —, rege as relações dos deuses com os homens. Com a percepção clara destes três elementos típicos do plurideísmo pagão se poderá compreender o sentido íntimo da mitologia dos gregos e dos romanos.

O primeiro destes elementos confessa nos seus crentes a noção, intuitivamente exacta, da Lei Natural, de que acima da própria força e grandeza dos deuses paira uma Lei, cujo sentido se desconhece, mas que age sempre e sobre tudo impera. No segundo elemento se reconhece a mentalidade de uma gente que tem a necessidade de objectivar tudo, para quem os deuses são, não fantasias concretizadas, mas probabilidades aumentadas. No terceiro elemento colhe-se a justa noção das coisas que tiveram os povos que notaram como a lei moral não tem valor fora da cidade e do povoado, como, no seu conjunto, não rege o mundo. Eles viram bem que a religião e a moral são necessidades sociais, mas não são factos que valham na metafísica das acções; que em tudo paira o arbítrio, no sentido de o amoral.

Esta noção instintiva do paganismo, de tratar a moral e a religião antes como virtudes cívicas do que como realidades metafísicas, é um dos factos em que mais há que reparar numa apreciação do espírito do paganismo.

Objectivos acima de tudo, os pagãos tinham a noção do Limite. Foram os primeiros a tê-la. Em tudo que foi deles essa noção se releva. Na sua estatuária, que é de homens compreendores da forma, na sua literatura onde, pela primeira vez no mundo aparece a noção da unidade, da construção, da organicidade da obra de arte, na sua vida social, onde de princípio se assenta a sociedade na base de uma rigorosa distinção de classes, qual a que a escravatura marca, e que representa uma noção, se alguma coisa, rigorosa de mais, exageradamente nítida, dos factos sociais.

Nem as religiões anteriores ao paganismo, nem as posteriores, tiveram a noção de Limite. O cristianismo é um delírio. As religiões da Índia são hiperdelírios.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Regresso dos Deuses?