O cristismo está em liquidação.
O cristismo está em liquidação. Por todos os lados se deteriora e se estiola. O que era misticismo e interioridade deserta-o, para formar a substância dos diversos agrupamentos ocultistas que enxameiam em todo o mundo. O que era aspiração humanitária abandonou-o há um século, passado que foi para o bizantinismo sociológico dos democratas, dos socialistas e dos anarquistas. O que era tendência imperialista, impulso para a absorção, esvaiu-se como fenómeno cristista: passou para o campo político, e a febre de domínio que agita as tresloucadas sociedades contemporâneas é ainda um fermento cristão, deslocado do seu lugar religioso. Assim o cristismo se decompõe, passando, como em todas as decadências, os seus elementos componentes a ter vida própria, a agir separados do corpo a que pertenciam, e que formavam.
Ou estamos, portanto, em uma decadência final da nossa civilização; ou estamos apenas em um ponto dela em que se vai desfazer do cristismo. Se o cristismo é uma religião realmente independente, a primeira hipótese é justa; se é um paganismo adulterado, é a segunda que é provável.
No primeiro caso aquilo a que chamo uma reconstrução pagã nada tira nem põe para a civilização: é, como nesse caso tudo é, um passatempo estéril do nosso bizantinismo geral, permissível porque então, onde nada realmente vale pela utilidade, valha alguma coisa pela beleza. No segundo caso, a reconstrução do paganismo é um auxílio prestado à causa atrasada da civilização.
Essa reconstrução pagã terá que seguir três caminhos, porque, como o cristismo se dissolve em três elementos, que ficam independentes dele, o ataque directo ao cristismo deixa-os vivos e sãos. Temos que atacar o misticismo e o subjectivismo abjectos do ocultismo e do protestantismo decadente. Temos que atacar o humanitarismo e a democracia, produtos cristãos, filhos pródigos do cristismo. E temos que opor resistência, ainda que intelectual, ao stulto imperialismo moderno, imagem e semelhança da Igreja Católica, que viola aquele princípio da nacionalidade cujo símbolo máximo é a Cidade-Estado dos gregos e dos romanos.
E esta tripla tarefa — ou, antes, esta tarefa triplamente orientada — tem de se apoiar a uma base, e essa base é o ataque à substância do cristismo — ao critério subjectivo, excedencial, extra-humano na interpretação das coisas. Isto é, temos de inverter os valores fundamentais do cristismo, para que o sequemos na própria fonte e origem.
Não se diga que o actual império alemão aplica um paganismo já. Aplica o paganismo nórdico, e revela bem — curioso fenómeno! — que séculos de cristismo não foram séculos de cristianizacão. A brutalidade subjectivista e excedencial do original paganismo do Nibelungenlied , esse Rig-Veda da Indisciplina, nada tem com o paganismo greco-romano, todo harmonia, concordância e sincretismo. O império alemão representa a erecção do princípio imperialista do cristismo em princípio único, contraposto portanto aos outros dois — ao místico e ao humanitário. Assim não se sai do cristismo.
O sistema alemão parece pregar a Realidade contra a Fantasia. Engana-se. Prega a Fantasia Realista contra a Fantasia Humanitária. O vago dos deuses nórdicos opõe-se ao vago do Deus cristão, mas não é em ser vago, senão em ser outro. O vago e portanto a indisciplina, lá está, lá domina. O império alemão actual é uma invasão de bárbaros, que trocaram no cobre das suas almas as moedas de ouro da recebida tradição greco-latina.
A guerra presente, em que combatem, de um lado as forças mais representativas do misticismo imperialista, e do outro aquelas que melhor representam o misticismo democrático e humanitário, acabam de chocar uns contra os outros os princípios representativos do cristismo, e o misticismo propriamente, que é o terceiro elemento, fica submerso pela brutalidade e a rudeza inigualável desta guerra.
Assim o cristismo não só se desfaz, senão que as partes, em que se desfaz, umas às outras, por sua vez se desfazem. Em vinte séculos de domínio das almas o cristismo não conseguiu nem impor-se nem desfazer-se e tudo, quanto tem feito, tem sido feito por séries de reacções contra ele, como na imperfeita reacção humanista, quase neopagã, da Renascença, e a abjecta reacção neo-humanitária da Revolução Francesa.
Nós, os novos pagãos, comecemos pelo princípio pela doutrinação abstracta, intelectual dos princípios do contra-cristismo. No livro, a que me cabe a honra de pôr este prefácio, essa reacção começa, com toda a sua nudez teórica. De tal débil fonte, de tão humilde origem, perdida em uma província de Portugal, hajam os deuses concedido que nasça a nova luz que ilumine o mundo.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 265.Regresso dos Deuses? Ricardo Reis?