Disse Chateaubriand que o romantismo era a literatura...
Disse Chateaubriand que o romantismo era a literatura representativa do cristismo; disse bem. O cristismo só com o romantismo é que atinge a sua perfeita expressão literária... As épocas anteriores dependiam ainda artisticamente (como o próprio emprego dos deuses pagãos mostra) das fórmulas construídas pelo paganismo.
O período em que se esfacela o cristismo é o período em que liberta mais energia; o período onde os seus elementos, decompondo-se, passam a viver independentes é o período onde cada um pode melhor mostrar o que é.
Ninguém se admire que esteja o romantismo eivado de metafísica panteísta: o cristismo, no seu filosofismo neoplatónico substantivo, sendo emanacionista, é panteísta. Só não vê, nem compreende, este facto quem não tenha resolvido, pela análise, nos seus veros elementos constitutivos o sistema religioso cristista.
Dos elementos constitutivos do cristismo, vemos que o elemento humanitário decadente aparece na revolução francesa; vemos que o elemento místico, neoplatónico e gnóstico, surge na eflorescência das escolas ocultistas; vemos que o elemento imperialista, à parte acentuar-se nitidamente adentro do catolicismo tentativamente renascente, aparece nas nações ocidentais com um cunho de brutalidade e de incompreensão das leis sociais que não deixa esquecer a origem no império da decadência; que, finalmente, o cosmopolitismo ( is this the 4th element? verify! ) assume um carácter acentuado em aquelas nações que não curam de um imperialismo nítido. O que é feito, porém, do quinto elemento cristista — o paganismo sobre o qual o cristismo se ergueu, e se vitalizou?
Se o cristismo fosse uma religião nova, substituidora deveras do paganismo, diríamos que, muito naturalmente, o elemento pagão desaparecera, e que o cristismo se fortalecia por fim, unificando-se. Mas, além de sabermos já que o cristismo se ergueu sobre o paganismo, que prolonga, nós vemos que, longe de unificar-se, o cristismo se dissolve, e que os seus elementos, que agiam até ali conjuntos uns com outros, embora já em dissolução, nitidamente se separam uns dos outros. Qual deles é típico do cristismo? Nenhum, porque o cristismo era eles todos juntos. Estamos, pois, em verdade, em face da dissolução final do cristismo.
O elemento pagão, porém, não se perdeu. Nós vimos que esse elemento foi o que, através de tudo, deu objectividade ao espírito cristista, e que lhe evitou os mais graves desmandos do cristismo legítimo. Vimos que a subsistência do elemento pagão alentou a arte cristista, e evitou que o romantismo fosse, como deveria ser, o seu fenómeno constante. Com a dissolução do cristismo, para onde passou o espírito de objectividade? A resposta e patente: passou para a ciência. Isto é, passou para aquele fenómeno moderno que é precisamente o mais característico da época. Com isso começou, substancialmente, a repaganização do mundo;
A única força verdadeira e segura do mundo moderno é a ciência positiva. A ciência objectiva — eis o novo elemento de equilíbrio da subjectividade liberta, que entrou no mundo. Para se tornar um princípio deveras preponderante falta à ciência que saia na verdade dos laboratórios e das cátedras, e se humanize. Ora a humanização suprema é, como vimos no princípio, deste livro, a religião, e, como ali também vimos, para um princípio se tornar condutor de uma sociedade e deveras representativo dela, tem de tornar-se sua religião.
Uma religião provinda da ciência, que é essencialmente objectiva, tem de ser uma religião absolutamente objectiva. Ora nós vimos, logo no início deste estudo, que a pura religião objectivista é o paganismo. Por onde se descobre que, com o acréscimo do valor da ciência, com o alargamento das suas conquistas e o alastre da sua técnica mental, o paganismo começou a renascer.
Está, pois, provado que o renascimento do paganismo começou a operar-se.
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A força de dissolução inerente ao cristismo como sistema decadente era, apesar de forte e constante, de certo modo atenuada enquanto ele coeria mais ou menos, isto é, enquanto os princípios constitutivos dele se não tinham individuado, ou apenas em parte se tinham individuado. O progresso, mal começou na nossa civilização, entrou de dissolver o cristismo, porque este, como sistema decadente, se lhe opunha. Entrando de dissolvê-lo, continuou dissolvendo-o. Chegou a dissolução ao ponto que acabamos de apontar. Antes disso, além do mais, o facto de que o paganismo sempre estava no fundo do cristismo prestava-lhe a coesão íntima de objectividade latente. Agora não.
Ora se o cristismo, quando coerente, agia já tão dissolventemente que, para se progredir, era mister destruir o cristismo, que cada conquista da civilização era uma vitória ganha à religião cristã, muito maior foi o poder dissolutor do cristismo uma vez que ele se decompôs nos seus elementos vários, individuando-se cada um. Muito maior, tanto porque a acção de quatro coisas separadas, todas em um sentido (o mórbido, aqui), é maior que a delas juntas em uma quando se trate de acção de dissolução e não de força, como porque a acção separada de elementos que formaram parte de um todo é, já de si, dissolvente.
Além disto, a libertação dos elementos individuados do cristismo, dando unidade a cada um, multiplicou-lhe a força, com que agisse.
Tão forte se tornou a acção dissolutória que naturalmente surgiram — pois que se trata de uma civilização desde o princípio envenenada, mas não mortalmente envenenada, pois que não teria nunca sido, então, uma civilização —, reacções várias. Essas reacções foram de três ordens.
A primeira foi a de uns dos elementos libertos sobre os outros. Assim o humanitarismo democrático e libertário reagia contra o imperialismo; e este contra aquele; o ocultismo agia contra o democratismo puramente laico, etc... O resultado desta interacção foi duplo: no que positivo, evitar que cada um dos elementos, tornando-se excessivamente dominador, passasse, na sua qualidade de mórbido, a destruir tiranicamente a civilização; no que negativo, consumar a dissolução do cristismo, pois que, à medida que cada elemento combatia outro, era o cristismo que se combatia a si próprio.
O segundo género de reacção foi a das correntes crististas onde ainda havia mais de um elemento ligado contra as totalmente individuadas, e contra outras contendo também mais de um elemento, mas principalmente contra as individuadas. Assim, a Igreja Católica reagiu contra o democratismo, contra o ocultismo, contra o objectivismo científico, contra o imperialismo não-seu (. . . ).
O terceiro género de reacção foi o da própria civilização contra os elementos individuados do cristismo. Foi assim que, à medida que progredia, por exemplo; o humanitarismo democrático, as forças naturais da sociedade se revoltavam contra ele, esboçando lentamente uma orientação aristocrática. Este género de reacção apareceu de duas maneiras: como reacção das forças íntimas da sociedade, pura e simplesmente, e como reacção das outras correntes ou elementos individuados do cristismo, que, para fins críticos, iam descobrindo verdades. Assim, os defensores do catolicismo vão contrapondo ao democratismo os princípios aristocráticos inerentes a toda a organização social; a par do momentâneo lucro que de aí possa advir à doutrina em nome da qual fazem essa crítica, advém por certo lucro à ciência social
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Convém não esquecer um ponto importante. As coisas, aqui descritas, da maneira em que estão descritas, não correspondem fotograficamente à realidade. Não estão extremados, em indivíduos e em correntes, os campos e as doutrinas, como aqui as extremo. Mas eu faço ciência, não descrição. A luz do sol é branca, como coisa vista; mas é composta das sete cores do espectro, como realidade científica. Estas correntes, que apontei, e a que chamei os elementos individuados do cristismo, não estão individuadas com a nitidez de pessoas humanas, que se destacam do ambiente pela forma do seu corpo. Tudo se mistura e se entrepenetra. Sobretudo se mistura e se entrepenetra em uma época como a nossa, onde os elementos activos na sociedade são quatro ou cinco, onde as nações são muitas, onde a confusão e a indisciplina são extraordinárias, e onde ninguém sabe nem o que quer, nem sequer o que lhe falta. (??)
Convém ter isto sempre presente, para que se não confunda a vida com a explicação da vida, a realidade visível com a realidade científica, a realidade sintética do mundo com a realidade analítica da compreensão dele.
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Comte teve uma justa intuição quando viu que ciência positiva, de per si, não bastava para orientar a sociedade, e quis, portanto, tornar essa ciência uma religião. Filho, porém, do seu tempo e oriundo, sem que o soubesse, do próprio ventre maculado contra o qual se revoltou, que fez ele, que quis ele fazer? Construir para forma vital da ciência, uma religião da humanidade, patente descendente da religião humanitária da Revolução Francesa. Mémores de tanta coisa que não viu mal, relevemos ao pobre alienado os desvios que herdou da sua época.
Mais próximo da verdade esteve já a intuição do cientista Haeckel. Quis ele sugerir uma religião, dando, como adoráveis as forças da Natureza. Na verdade a intuição é justa. Simplesmente um fenómeno assim intelectual não é uma religião. A religião — sabe-o já o leitor deste livro — é dos sentidos e da emoção directa e geral. E o paganismo que é a religião da época da ciência. A ciência é filha do paganismo, porque a ciência é grega — a nossa pelo menos. Estranho caso o de um homem que procura com afinco encontrar uma coisa que já existe!
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Reagindo contra o misticismo democrático, o instinto mantenedor das sociedades, guiado recentemente pelo desenvolvimento e esclarecimento da sociologia, começa. a descrer, a combater, a desprezar esse misticismo.
Reagindo contra o misticismo ocultista ( . . . ) Mas a reacção tem sido fraca, em parte porque ainda se não compreendeu bem quanto o ocultismo tem alastrado, em parte porque, não se vendo o que é o ocultismo adentro do cristismo, não se tem visto o perigo, como elemento de dissolução, que ele representa. Reagindo contra o imperialismo, afirmado supremamente nesta guerra pela Alemanha, acentua-se o princípio são e forte da existência das pequenas nacionalidades
Reagindo contra o cosmopolitismo, tem a guerra presente feito funcionar o sentimento pátrio. E já antes as reconstruções do regionalismo ajudavam esta reacção, como a anteriormente notada.
Reagindo contra o paganismo degenerado de Roma, o espírito científico, mau grado desvios e tibiezas, continua agindo, e continua agindo, porque a ciência segue sempre, e o espírito cientifico segue por força com ela. O que resta fazer? Resta orientar todas estas reacções. Qual o sentido destas reacções? Vimos que convergem para o sentido pagão. É preciso portanto criar o paganismo, para dar um sentido profundo, isto é, religioso, a este momento disperso, que se perde por combater elemento a elemento o cristismo dissolvendo-se, e por isso dá tréguas ora a um, ora a outro dos elementos; pois que cada elemento de combate não
combate todos os outros, do cristismo.
Para o paganismo falta, portanto, o paganismo. Faltava restaurar a essência do paganismo. Como fazê-lo?
Não podia ser coisa conscientemente feita. Não o podia ser, porque uma religião nasce do instintivo, não se pode construir como se constrói um sistema metafísico. Tem de nascer da sensibilidade directa das coisas. O facto de que o paganismo existiu já não quer dizer que se possa ir buscá-lo ao passado. O mais que se iria buscar era a forma sem vida, o mero corpo morto do paganismo. Devia, a dar-se o fenómeno verdadeiro do regresso ao paganismo, surgir uma sensibilidade pagã.
Nesta altura surgiu Alberto Caeiro.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 270.Regresso dos Deuses?