Prefácio a Caeiro
Prefácio a Caeiro
O período presente (actual) da vida da humanidade é definido e caracterizado pela predominância da actividade científica sobre todas as outras formas de actividade — quer norteando, com a sua disciplina, a prática da ciência experimental, e a das ciências de erudição; quer alargando e multiplicando, com a sua aplicação, as facilidades de vida e do conforto, que é uma segunda vida; quer, com a sua própria essência, obrigando a mentalidade dos homens a abdicar daquele posto, onde a religião a pusera, para subordinar a própria religião a um critério — seja o de uma apologética objectivista, seja o de um pragmatismo utilitário (...) — Já propriamente científico.
Fenómeno naturalmente nascido do acréscimo natural dos conhecimentos, do influxo libertador do renascimento das civilizações antigas, da desenclausuração
geográfica realizada pela influência das descobertas, do crescente livre exercício da razão e da especulação pelo aumento da liberdade política e individual, a Ciência
rapidamente tomou por seu lugar o vero imo templo, o sumo trono, dos espíritos de hoje.
As gerações, em que este novo fenómeno se deu, descendem, porém, de gerações secularmente impregnadas do espírito, quando não da própria letra, da civilização cristã. Em um ou outro dos seus pontos, a ciência entra em conflito com a mentalidade que encontrou. Necessariamente objectivista no método e nos resultados, vai de encontro ao carácter diversamente subjectivista, mas subjectivista sempre, das especulações, e dos sentimentos, crististas. Necessariamente fria e dura nas suas apreciações, vai de encontro às várias formas de sentimentalidade que constituem o fundo moral do cristismo. Necessariamente nos seus intuitos, pois os seus resultados aplicados beneficiam materialmente a humanidade, e a atitude mental que deriva da sua prática torna inaptos os seus práticos a olharem acima da humanidade objectiva, vai de encontro a quanta teorização especificamente transcendente caracteriza a metafísica cristista. Não ataca, propriamente, a metafísica, porque não entra em conflito com essa actividade do espirito, que se exerce para além das suas fronteiras; limita, porém, várias das emergências práticas da metafísica, onde o conflito se estabelece; e a religião, que é essencialmente uma metafísica imersa na prática, vive por isso na constante repulsa da mentalidade científica.
Ora, quando em uma sociedade ou civilização um novo elemento aparece, que de sua natureza é antagónico a seculares depósitos mentais, à estrutura, adquirida há tanto que já parece natural e própria, do próprio espírito, o primeiro acontecimento mental, e portanto essencial, que resulta, é a incapacidade à adaptação dessa mentalidade a esse meio novamente criado. De aqui, como consequência, segue-se um período de transição e de decadências, de flutuações mentais, de incertezas nos pensamentos como nas obras, antes que a adaptação se dê e o acordo se estabeleça.
Tal o século dezanove e este princípio de século, não se sabe até quando, ou até onde.
A desadaptação ao meio assume três formas, que verificamos darem-se no nosso tempo. A primeira é a desadaptação total, e, portanto, a reacção integral contra as influências novas que, no momento, representam o espírito e a tendência da civilização. A segunda é a falsa adaptação — isto é, a persistência do velho espírito julgando, por assumir as aparências do novo, que lhe vestiu o próprio corpo, e não só os trajes. A terceira é a adaptação incompleta, cujo nome basta para a definir.
Os três fenómenos de inadaptação distinguem o século que passou e o em que vivemos.
A desadaptação total é representada por todas aquelas forças, a que é costume chamar-se reaccionárias; não é sem razão o título, mas o alcance é, em geral, mal visto, e o apodo cabe a mais indivíduos, e a mais correntes, do que aquelas a quem de uso se aplica. Um sistema como a Igreja Católica não tem, por exemplo, razão de existir num período definido e tipificado pela actividade científica. A sua persistência é uma insistência. A sua própria permanência, por passiva que fosse, era, já de si, uma reacção, no pleno sentido do termo. Até aqui estarão de acordo comigo os indivíduos que é costume designar de avançados. Mas eu não quero esse acordo. Vamos alargar o inquérito, e ver-se-á que, como acima o disse, é muito mais lata do que se julga a aplicação do termo «reaccionário». Verificámos que é no campo religioso; examinemos agora que fenómenos correspondem no campo político. Parecerá, à primeira vista, que são reaccionários, muito simplesmente, os sistemas que advoguem, por exemplo, o absolutismo régio. O absolutismo régio é, porém, apenas um tipo desses sistemas. A essência deles é outra. Se alguma coisa a ciência impõe, como base política, é que se repare nas divergências nacionais, criadas, primeiro por situação geográfica, segundo por situação histórica. Tudo quanto reaja contra esta tese é reaccionário em política. Começa a ver-se quão lata é a aplicação do princípio, logo que comece a aprofundar-se. Uma outra coisa a ciência impõe, neste campo: a necessidade da adaptação ao meio, que é o teor geral da civilização. Assim, ao passo que, por um lado, faz assentar a tese política em um nacionalismo científico, por outro faz assentar essa tese em um internacionalismo igualmente científico, representando a adaptação desse nacionalismo ao espírito da época.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
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