O humanitarismo é o último baluarte da doutrina cristã.
O humanitarismo é o último baluarte da doutrina cristã. Nele estão depositadas as próprias raízes do cristismo, desvestidas já do tronco e das folhas. Mas o mal cristão existe ali, em toda a plenitude da sua maleficência.
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Quando um criticismo e um contra-criticismo houverem minado sucessivamente as bases da religião, como já fizeram, e as da ciência, como estão fazendo, só há a esperar uma violenta reviviscência mística, porque o espírito humano é apenas superficialmente intelectual, porque apenas superficialmente é individual, sendo social de sua mais íntima natureza.
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No fundo, a religião é uma forma rudimentar do sentimento da beleza. Toda a arte não passa de um ritual religioso.
A frase profunda de Goethe — que pode dispensar a religião aquele que tem a ciência e a arte, mas não quem as não tem — tem, no fundo, esta significação muito simples: quem não pode ter uma arte superior, que tenha uma arte inferior. (Ou, propriamente, não será a religião a base indiferenciada da arte, da ciência e da moral?) É tão absurdo querer que o povo deixe de ter religião, como o é que ele deixe de ter amor aos espectáculos teatrais, que são as formas indiferenciadas da arte. A arte é insocial, a religião é a forma social da arte.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 282.Regresso dos Deuses?