Injusto seria — e não só injusto senão que desagradecido...
Injusto seria — e não só injusto senão que desagradecido — que increpássemos a Alberto Caeiro a pouca observância, que exerce, da forma e do seu perfeito equilíbrio, e não só isto, mas também a disciplina relativamente débil, para tão elevado conceito das coisas, que emprega na sua própria inspiração. Mas aos iniciadores e (...) não se pode exigir que, além do novo que trazem, cuidem também da disciplina da novidade que acarretam. Aristóteles foi, como sabeis, o primeiro que formou uma noção da síntese científica; mas não é sua obra o melhor exemplo da síntese rígida como a quereríamos. Porque iniciou, sua atenção ficou parada no que havia a iniciar, sem muito tempo para empregar no como ordenasse o que havia trazido. O que não exigimos de Aristóteles — embora por força lastimemos a sua ausência — não o devemos de requerer de Alberto Caeiro. Bom é que se note, contudo, que, dos iniciadores, ele é dos menos pecadores em matéria de levar a bom êxito a novidade que trouxe.
Outra coisa ainda, porventura, caberia que não deixasse de vos explicar. No que escrevo, por isso que escrevo, não é abuso que procureis a excelência da forma e o cuidado da frase. É dever de quem pratica as letras, ainda que só para ensinamento, cuidar de como usa o material de que se serve. Ora em minhas laudas não se vos deparará cópia de elegâncias, com que vos enleveis, nem relevo de conceitos, com que meus próprios teoremas se realcem. Reparai, porém, (e com reparardes nisso relevai-‑me), que sou, não um cultor das letras, que pode, sem prejuízo de seu engenho, pôr o escrúpulo todo no como escreve, mas apenas um estudioso e um cogitador, que outro uso não dá às qualidades do seu espírito do que empregá-las na procura da verdade, e na observância da lógica. Por isso não encontrareis com que vos deleitar nos parágrafos desta exposição; apenas com que vos não enfastieis isso me competia dar-vos e tenho-vo-lo dado. Nesse ponto, em verdade, quero que sejais benévolos; não já, porém, no estudo da teoria que vos dou, onde o melhor elogio é a atenção e a ponderada discordância, se bem que não para agradar, mais aprazível, por certo, que o descuidado e espontâneo deleite.
Com isto vos deixo e com desejar-vos que do que vos exponho possais compenetrar-vos de quanto era excelente e amável aquela religião de muitos deuses cuja origem foi no seio do povo a quem o coro (...) de Eurípedes disse, (...), da excelência e da (...) daquela forma antiga de fé que o cristianismo, revolta de escravos, destruiu.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 264.Prefácio a Caeiro. 1ª versão inc.: Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação . Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.