Partindo de um estado de intuição confuso e complicado,
Partindo de um estado de intuição confuso e complicado, onde a mistura da avita mentalidade cristista com a original sensação pagã paira ainda em um nível de sensibilidade naturalista complexamente parecido com a emotividade de Francisco de Assis, o poeta, na estrada do conhecimento progressivo do seu destino temperamental, pouco a pouco se aproxima da expressão intelectual que deveras quadra com a sua tendência objectivista. No início, como no caos, tudo se mistura e confunde. Com a formação definida das ideias-mestras da inspiração, esta se fixa e se radica; cessam as contradições e, onde não cessam, explicam-se; o feitio destinado do espírito desabrocha; forma-se, no homem, o poeta; ou o objectivismo absoluto encontra o seu definidor.
Pareceria, a princípio, que a obra melhor nos serviria se, elaborada cautamente, nos escaninhos da alma, só fosse dada à expressão quando o poeta houvesse atingido a maturidade dos seus conceitos e da filosofia em que se apoiasse. Ser-nos-ia poupada, assim, a contemplação das hesitações, das nebulosidades e das incoerências em que um espírito se debate, quando — desta espécie ou de outra — luta ainda por libertar-se.
Mas, na verdade, embora com isto perigasse a perfeita preparação e beleza da obra, não posso lamentar que essa obra nos mostre, além de, por fim, o espírito definido e completo, no princípio e no meio a preparação dolorosa desse espírito para completar-se.
Na obra, tal qual está, colhemos o ensinamento que vem de contemplar os caminhos, os processos por onde um espírito, abandonando o erro, busca e encontra a verdade. Nas primeiras formas, confusas e indecisas ainda, o espírito busca desenvencilhar-se dos errores atávicos, procura criar a si próprio a mentalidade que convém à sua intuição das coisas verdadeiras. Lentamente o faz. Pouco a pouco se desveste das avitas taras, e assim, em seu processo libertador, prefigura a luta que há-de ter a civilização consigo mesma para chegar ao ponto onde ele chegou. Vemos como se chega ao paganismo saindo do cristismo. Nada se perde com ver qual a espécie de hesitação que caracteriza o princípio da viagem, quais os caminhos por onde o espírito chega ao fim dela. Titânica luta! Maravilhoso espírito o que, travando‑a, venceu!
Mostrando-nos não só as consequências da vitória, e o espólio da conquista, como também os incidentes do combate, os episódios a vencer, ele dá-nos não só um resultado como também uma lição. Não só nos ensina a liberdade, como a libertação também.
Aqueles de nós que não precisam de saber o caminho, mas apenas a meta, têm ali a meta; aqueles que, para tocarem a meta, hão mister de saber o caminho, vêem ali o caminho. A fortes e a fracos a obra instrui. Perfeito, seria só para os fortes. Aperfeiçoando-se, serve a fortes e a fracos.
Louvo, porém, a intuição que consentiu em apresentar a educação objectivista de um espírito e não só o seu objectivismo final. A teoria e a prática da libertação quedam, assim, patentes e, por patentes, aproveitáveis.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 265.Prefácio a Caeiro.