Acontece-me às vezes, e sempre que acontece é quase de repente,
L. do D.
Acontece-me às vezes, e sempre que acontece e quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de acto com que dominá-lo. Para o remediar o suicídio parece incerto, a morte, mesmo suposta a inconsciência, ainda pouco. É um cansaço que ambiciona, não o deixar de existir — o que pode ser ou pode não ser possível —, mas uma coisa muito mais horrorosa e profunda, o deixar de sequer ter existido, o que não há maneira de poder ser.
Creio entrever, por vezes, nas especulações, em geral confusas, dos índios qualquer coisa desta ambição mais negativa do que o nada. Mas ou lhes falta a agudeza de sensação para relatar assim o que pensam ou lhes falta a acuidade de pensamento para sentir assim o que sentem. O facto é que o que neles entrevejo não vejo. O facto é que me creio o primeiro a entregar a palavras o absurdo sinistro desta sensação sem remédio.
E curo-a com o escrevê-la. Sim, não há desolação, se é profunda deveras, desde.que não seja puro sentimento, mas nela participe a inteligência, para que não haja o remédio irónico de a dizer. Quando a literatura não tivesse outra utilidade, esta, embora para poucos, teria.
Os males da inteligência, infelizmente, doem menos que os do sentimento, e os do sentimento, infelizmente, menos que os do corpo. Digo «infelizmente» porque a dignidade humana exigiria o avesso. Não há sensação angustiada do mistério que possa doer como o amor, o ciúme, a saudade, que possa sufocar como o medo físico intenso, que possa transformar como a cólera ou a ambição. Mas também nenhuma dor das que esfacelam a alma consegue ser tão realmente dor como a dor de dentes, ou a das cólicas, ou (suponho) a dor de parto.
De tal modo somos constituídos que a inteligência que enobrece certas emoções ou sensações, e as eleva acima das outras, as deprime também se estende a sua análise à comparação entre todas.
Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.
Dentro da capoeira de onde irá a matar, o galo canta hinos à liberdade porque lhe deram dois poleiros.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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