INTERVALO [b]
INTERVALO
Ante falhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa. Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação extrema e falsa, como a de ter chegado ao término duma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até as suas raízes de mistério da cor do meu tédio.
Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram... A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos.
A mínima acção é-me dolorosa como uma heroicidade... O mais pequeno gesto passa-se no ideá-lo, como se fora (houvesse de ser) uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.
Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em (poder) estar.
O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa dum repuxo — subir para cair no mesmo sítio, brilho ao sol sem utilidade nenhuma e fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pensar em riso no seu sonho, sorria esquecidamente.
Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.
- 220.