«Orpheu»
«Orpheu »
De mais a mais, o que o crítico deve distinguir, com curioso cuidado, é o confuso do complexo. Nem deve cair nesse erro crasso, que é vulgar naqueles que procuram seguir os clássicos, sem lhes terem compreendido assaz o espírito da Obra, que consiste em crer que o estilo simples é o melhor de todos, o que é certo, mas não reparando em que não há só um estilo simples porém vários; que a simplicidade não é uma, mas de diversas espécies.
Há, por certo, um modo simples de dizer as coisas; se essas coisas, porém, forem, de sua natureza, complexas, não hão-de ser ditas de tal maneira que uma simplicidade de expressão as torne simples, pois que, se são complexas, fazê-las parecer simples é exprimi-las mal. O espírito de um Dante ou o de um Shakespeare, porque têm herdado séculos de acumulações cristãs, têm outra complexidade que não o espírito de um Homero, ou mesmo de um Virgílio. O que o crítico sagaz exige de um Dante ou de um Shakespeare não é que escrevam na simplicidade de um Homero ou de um Virgílio, mas sim que escrevam exprimindo com a clareza que couber àquelas coisas que pensam.
A simplicidade, além de ser diversa consoante os indivíduos, comporta, fora isto, diversos aspectos absolutos. Uma coisa pode ser expressa simplesmente, pela razão que de sua natureza é simples; pode ser expressa simplesmente porque seja traduzida directamente como é sentida, sem que se procure ajustá-la a qualquer ideal de estética estranho à coisa sentida; e pode ser expressa simplesmente por ser sujeitada a um tal critério estético, a um critério estético que imponha a preocupação da simplicidade.
Sucede que, se algum pecado pesa sobre os literatos
de Orpheu, ele é o de se exprimirem com demasiada simplicidade. Relatam uma coisa tal qual a sentem, sem procurar ajustá-la à compreensão dos outros, nem subordiná-la a qualquer critério estético. Quando o senhor Sá-Carneiro diz que «sente as cores noutras direcções» peca, se peca, por uma excessiva simplicidade. Não lhe ocorreria dizer que sente as cores em outras direcções se efectivamente — talvez por qualquer desarranjo de sentidos, o que concedo possa ser — efectivamente assim não sentisse as cores, por uma transmutação sensional esquisita. E que as não sinta assim, mas apenas imagine que as sinta, tem o direito do artista de imaginar o que não é, que outro não o é o direito que tem Shakespeare de criar um Hamlet que não existe, nem outro é o direito fundamental dos artistas.
Fernando Pessoa: Começo neste momento, etc.
Aqui, sem embargo, a frase é de uma simplicidade calva. O sentimento expresso é que é complexo.
Quando o senhor Alfredo Pedro Guisado diz «Deus, longo cais em mim», eu compreendo-o perfeitamente, nem creio que o não compreenderá a criatura que se tiver dado ao trabalho de estudar as literaturas antigas e as modernas, versando, com mão diurna e nocturna, as páginas diferentes de quantos poetas têm ornado com a sua dolorosa glória as paredes nuas de este triste mundo. «Deus, longo cais em mim» é uma sensação directa, de origem imaginativa, sem dúvida.
O que é preciso é compenetrarmo-nos de que, na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e não querer que ele nos siga. A maior parte da gente não sabe ler, e chama [ler] a adaptar a si o que o autor escreve, quando, para o homem culto, compreender o que se lê é, ao contrário, adaptar-se ao que o autor escreveu. Pouca gente sabe ler, os eruditos, propriamente tais, menos que ninguém. Como no primeiro folheto demonstrei, os eruditos não têm cultura.
Devo a minha compreensão dos literatos de Orpheu a uma leitura aturada sobretudo dos gregos, que habilitam quem os saiba ler a não ter pasmo de coisa nenhuma. Da Grécia Antiga vê-se o mundo inteiro, o passado como o futuro, a tal altura emerge, dos menores cumes das outras civilizações, o seu alto píncaro de glória criadora.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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