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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual…

L. do D.

Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana.

— O Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone, que é a amiga, por nome e dona […] no meio da meditação do período mais insexual de uma teoria estética e mental.

Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna [?] e a alma fora do universo em seu conjunto. Todos têm o patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao telefone no momento sempre impróprio em que a tarde admirável desce e as amantes [...] arriscam falar contra o amigo que está fazendo chi-chi como os outros sabemos.

Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem diante duma escrita do armazém de fazenda, todos têm um Caixa diante de si — seja a mulher com quem casaram, seja a […] dum futuro que lhe vem por herança, seja o que for logo que positivamente [?] seja.

Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes, tão agradável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com eles, e tudo, não sei como, tão sórdido, tão reles, tão pequeno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua, sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sempre com o patrão ainda que no infinito.

Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.

Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro, eterno de todas as Câmaras Municipais.

E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua.

A Viagem na Cabeça

Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos ou somente impossíveis.

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

 - 124.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.