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António Mora

PROLEGÓMENOS - Uma corrente literária não passa de uma metafísica.

PROLEGÓMENOS

Uma corrente literária não passa de uma metafísica.

Uma metafísica é um modo de sentir as coisas — esse modo de sentir as coisas pode, segundo o temperamento do indivíduo, tomar um carácter religioso.

Quando acusaram Lamartine de ser panteísta, ele defendeu-se alegando o seu pensamento espiritualista, ortodoxo. Não há razão para duvidar do que ele disse; mas, também não há razão para duvidar de que ele fosse, no seu temperamento artístico, e, portanto, no seu temperamento todo, um panteísta. A sua geração sentia panteisticamente, pensasse lá como pensasse.

Mas o pensamento panteísta não passa de uma forma mais intensa de sentir o universo. As metafísicas têm gradação; são modos mais ou menos intensos, mais ou menos lúcidos, De sentir o Universo. O materialismo está no mais baixo nível, representa uma sensibilidade mínima perante o Universo, um conceito estético reduzido, porque não vive a vida das coisas em grau superior. Por isso não há grandes poetas materialistas (porque Lucrécio é um filósofo materialista) nem os poetas materialistas empregam imagens brilhante, original —, ou caracteristicamente.

O que cumpre ao neopagão é fazer isto tudo conscientemente. Ele admite todas as metafísicas como aceitáveis, exactamente como o pagão aceitava todos os deuses na larga capacidade do seu panteão. Ele não procura unificar numa metafísica as suas ideias filosóficas, mas realizar um ecleticismo que não procura saber a verdade, por crer que todas as filosofias são igualmente verdadeiras.

O neopagão convencer-se-á de que, escrevendo, realiza o seu sentimento da Natureza. Segundo a intensidade desse sentimento, uma ou outra deve ser a metafísica em que ele assenta. Certas horas da Natureza pedem uma metafísica diversa da que outras exigem.

O argumento psicológico: Tudo se tornará compreensível quando repararmos bem (o que tem passado sem o preciso estudo) qual o papel da religião na alma humana. Ora esse papel apresenta-se-nos sob três aspectos, consoante a religião actue sobre a inteligência, sobre as emoções, sobre propriamente o carácter, isto é, a norma geral de acção, de comunicação com os nossos semelhantes (distinto este aspecto do emotivo, em que o emotivo aqui significa apenas do indivíduo na sua intimidade espiritual).

O papel intelectual do sentimento religioso é, em primeiro lugar, o de estabilizador e disciplinador da inteligência. Não o é no errado sentido em que certa escola francesa recente, emanada do triste sistema chamado positivismo, procura dar-lhe; essa escola aplica a religião como um remédio, quando a religião, se a frase se permite, é, antes, uma saúde. Pelo menos, ela é uma grande pândega metafísica, um divertimento transcendente, no teatro iluminado a estrelas do extraordinário universo.

Não é como remédio para os desmandos possíveis da inteligência que a religião vive e serve; se assim fosse, não haveríamos senão que dar toda a razão aos seus inimigos, que

contra ela se erguem em nome da liberdade — e na liberdade a religião, quando bem a entendemos, excede, afinal, toda outra actividade do espírito.

A religião é disciplinadora da inteligência no sentido de que lhe dá uma base, sobre que confiadamente assente. Pode arguir-se que tal função implica uma restrição do pensamento, uma coarctação da sua liberdade. Entendamo-nos escrupulosamente sobre o assunto. — Em primeiro lugar, ao pôr semelhante argumento, subentendeu-se arbitrariamente que a religião existe num espírito naturalmente tendente a revoltar-se contra ela; mas falava-se, naturalmente, dum espírito qualquer, dum espírito apenas humano, não de um espírito irreligioso. Depois, para que serve, à sociedade, a liberdade de pensamento, que se julga cortada com o sentimento religioso? (Porque não devemos esquecer que é em relação à sua utilidade que estamos tratando da religião, como da ciência.) A liberdade de pensamento tem dois sentidos: a liberdade exterior do pensamento, e a liberdade interior. Por a primeira entende-se a de cada indivíduo poder expor as suas opiniões sem que por isso sofra do estado. Por a segunda entende-se a liberdade de pensar o que quiser, a sós consigo, ou declaradamente, sem que de dentro do seu espírito se sinta com isso constrangido ou violando qualquer regra ou lei.

Quanto à liberdade exterior do pensamento, nada há na religião — numa religião sã — que a prejudique; que a religião antigamente oprimiu neste sentido já se sabe, como também já se sabe que essas eram as circunstâncias da época.

Agora no que respeita à liberdade interior do pensamento. Não será um dique ao progresso do espírito humano, que a religião domine de dentro o pensamento, que lhe imponha determinadas bases? Há a esta objecção duas respostas. A primeira é que o progresso não é senão a evolução duma forma sem que um conteúdo mude; senão, haveria, não evolução, mas já salto, descontinuidade, e o que sabemos da natureza não nos permite pôr essa tese. De modo que a religião neste ponto está de acordo com a natureza, ou melhor dizendo com Deus, como não podia deixar de ser. Mas a base que a religião fornece qual é? A base metafísica, a base do investigável, a base do vago, do indefinido. Ora, se repararmos bem, veremos que esta é a verdadeira base do progresso. Se um elemento do progresso tem de ser estável, para que outro possa ser progressivo, sem que seja aéreo e extranatural, o lógico é que o elemento estável seja aquele onde não pode haver evolução, onde não pode haver concreção, onde não pode haver determinação. Esse elemento é o elemento metafísico. Na metafísica não há evolução, porque a metafísica não é uma ciência, não se pode obter a certeza na metafísica; há sistemas que se revezam, sob formas diferentes, mas eles, no fundo, são poucos, um número certo, não passam desses; cada época interpreta essas hipóteses com as luzes que tem, e a mentalidade que criou. E é inútil dizer que na metafísica não há concreção, não há determinação, porque do que é incerto não pode haver certeza. A religião oferece aos homens uma certa tese metafísica, que lhes impõe que eles acreditem. Bem. É esse o fundo estável e inalterável sobre que eles têm de apoiar as suas teses flutuantes e evolutivas de matérias extrametafísicas. Se a religião não assentasse numa base metafísica certa, estável, teríamos uma inversão das condições de todo o progresso, porque haveria uma instabilização do próprio fundo. A ausência de sentimento religioso tem isto de péssimo: que é a ausência de todo o progresso, porque é ausência de toda a base, de todo o ponto de apoio para se progredir.

É vulgar já a constatação que uma teoria científica às vezes, sendo falsa, vale pelas descobertas a que leva. É que constituiu uma base, sobre a qual, aceitando-a, se trabalhou. Mas depois, dirá o leitor, a teoria, reconhecida falsa, abandona-se... Está muito bem. Neste mundo, como nada sabemos de essencial, não sabemos se a religião será falsa, não sabemos mesmo o que é ser falso; mas depois do Universo veremos ou não se se deve abandonar a religião. A religião é uma teoria científica para durar o universo [sic].

A ciência, para existir, tem de se apoiar numa metafísica: a admissão da realidade do mundo exterior. Pode um homem de ciência dizer que tanto não admite; se é um homem de ciência, se faz investigações, procura leis, obtém resultados, crê praticamente na realidade do mundo, porque crê na possibilidade da investigação científica, visto que investiga cientificamente. O que a ciência faz para ser possível, fá-lo a religião; somente como uma extensão maior e uma superior missão humana.

De modo que, longe de constituir um dique ao espírito humaro, a religião, mais propriamente falando, constitui um canal, por onde ele corra.

Disse que a essa objecção havia duas respostas. Citei a primeira. Vou dar a segunda.

A religião não só é a condição da liberdade do pensamento, porque seja a condicão da liberdade eficaz do pensamento, como é a condição da função hígida do pensamento. Mas, além de tudo isto, a religião é uma educação do pensamento, o que a ciência é apenas em certo grau, e a metafísica em grau nenhum. Ter uma religião envolve num indivíduo que ele se subordine a uma realidade exterior a ele, e superior a ele evidentemente. Ora tal é, como logo se vê, a primeira condição da disciplina. Até aqui, bem entendida, a ciência também chega, porque envolve a submissão à realidade, à natureza, que, como mais forte, é também superior. A metafísica é indisciplinadora por natureza, porque supõe que o pensamento pode resolver problemas essenciais, o que além de falso — porque o pensamento trabalha, ao fazê-lo, sobre determinados materiais, que ele não cria, e por isso não pode verificar; há sempre qualquer coisa de dado, de anterior ao pensamento —, também implica uma confiança excessiva em si próprio.

Mas há subordinação e subordinação. Há a do escravo, há a do trabalhador pago, há a do soldado que se alistou. Para ser uma educação do pensamento, a subordinação ensinada ao indivíduo tem de ser a dele a uma realidade que ele não possa propriamente explicar-se, porque então cairia sob o pensamento; a de uma realidade que ele conceba como moralmente superior, porque se assim não for ela é concebida como inferior em certo aspecto, por isso que, sendo entes morais, os homens hão-de sempre avaliar moralmente, e o amoral redunda em imoral; a de uma realidade, enfim, que seja ao mesmo tempo uma orientação, e esta palavra define tudo. Ora a ciência é uma subordinação à natureza, que é uma realidade, mas não uma orientação.

Se o indivíduo puder explicar-se pelo pensamento uma realidade, o natural será que se subordine ao pensamento, e não o pensamento e ele a ela.

A religião elimina a hesitação na vida; por isso é um poderoso tónico da vontade. A religião envolve um equilíbrio das emoções, porque, como ensina largas coisas humanitárias, ensina a emoção humanitária, por onde, sempre que venha uma emoção violenta, essa emoção traz consigo com que se domine.

Quiseram alguns filósofos, críticos do racionalismo, que a mentira fosse essencial à vida. Poder-se-á julgar que, perante a religião não é outra a nossa atitude, que a defendemos como a uma mentira, ou coisa incerta, que seja essencial à vida. Não é assim.

Empregámos em toda esta análise um critério utilitário. Importa que examinemos, agora, que espécie de critério seja este. Porque defendemos nós a religião como útil à vida? E ela não passará de uma coisa útil à vida?

Vejamos.

Uma coisa útil à vida implica uma coisa que leva cada ser a perseverar no ser, consoante o frasear de Spinoza. Tal critério, portanto, é profundamente naturalista. De modo que chegamos a esta conclusão: aquele critério que é o de cada ser instintivamente, que é o da natureza através de cada ser, esse critério, quando aplicado racionalmente, isto é, quando passado através da inteligência, justifica plenamente a religião. Por outras palavras: o que há de fundamental na natureza é a ideia de utilidade, de perseverar no ser; o que há de distintivo no homem é a inteligência; o que há, portanto, de fundamental no homem, como ser ao mesmo tempo instintivo e inteligente, é a religião.

Poder-se-á alegar, desde já, que, em todo este argumento se esqueceu uma coisa: não se fez uma afirmação da verdade. Partiu-se dum critério utilitário; mas não dum critério de verdade.

Falta, pois, examinar o que é a verdade. Para que se não diga que, como homens, temos a ideia de verdade, à qual se não pode substituir a de utilidade sem mais explicação, logo que se faça filosofia realmente.

Ora a palavra verdade comporta apenas um sentido possível. Ser verdadeiro é existir; isto, e mais nada. Não é ser lógico; não é ser moral; não é ser compatível com isto ou com aquilo. Verdade é igual a existência. Ponhamos, de resto, a questão num reductio ad absurdum. Suponha-se que a verdade não é a existência. Nesse caso teremos que encarar duas hipóteses possíveis: que há verdades que não existem, e nesse caso não são verdades; e que há coisas que existem e que não são verdadeiras. Poder-se-á dizer que, para haver o erro, deve com efeito haver coisas que existem sem ser verdadeiras; se não não haveria o erro. O erro existe, com efeito. Mas o que implica a noção de erro? (A noção de erro é muito mais complexa que a de verdade). Que há fenómenos que se dão, e estão errados? Não: tal ideia é impensável. Apenas, pois, que há fenómenos que se dão e não são bem interpretados. Portanto, que há opiniões a respeito de fenómenos que não correspondem aos fenómenos como eles se deram. Portanto, que há opiniões que implicam que existe uma coisa que não existe. Erro, portanto, é uma afirmação de que existe o que não existe. Verdade é, pois, existência.

Ora o que existe fundamentalmente, na nossa experiência da natureza é o instinto de conservação. Ele é o fenómeno que percorre do reino mineral até ao homem, a tendência, como disse Spinoza, do ser para perseverar em ser. O instinto de conservação é, portanto, a Verdade. A interpretação dele através da inteligência é a interpretação intelectual da verdade. Ora a interpretação dele através da inteligência vimos que é a religião. A religião, portanto, é a forma humana (porque inteligente) da verdade.

Vimos, pois, que a religião corresponde à verdade. Mas o que é religião? A que religião se alude? Como entendermo-nos no assunto, se tem havido tantas religiões no mundo?

Isto é uma defesa do cristianismo, ou é uma defesa do Budismo, do maometanismo, do sistema pagão? Se é de todos, como consociá-los? Se é de só um, como excluir os outros? Se a base da exclusão, supondo-a feita, é um exame do que é útil à nossa civilização, que critério é esse, que forma estreita de critério utilitário?

O que provámos, até aqui, foi que a religião, abstractamente falando, corresponde à verdade. Ora, como há, não religião, mas religiões, o que se deve entender por isto, como se compreende isto.

É evidente que o caso comporta (assente como está a sua base) três soluções: (1) que haja na realidade apenas uma só religião, de que todas as religiões não são senão formas; (2) que haja uma religião verdadeira, das que as outras, falsas, não teriam sido senão aproximações; (3) que todas as religiões são falsas, mas representam um caminho para a religião verdadeira.

1916?

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

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