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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

HINO

HINO

Os que morrem pela Pátria não morrem: levanta-os a Pátria nos braços para receberem o beijo de Deus.

Todo o acto heróico, por incrédulo e ateu que seja o seu autor, é de sua essência divino. Todo o acto heróico, por eunuco que seja o seu [...] de sua essência é verdade.

O divino exemplo dos heróis é uma perpétua bênção às almas.

O herói, ainda que impuro fosse, justifica-se no fogo da morte do mal que tivesse e do que a ilusão o houvesse imperfeiçoado.

O herói, pelo seu acto de heroísmo renuncia à ilusão do mundo, que manda que se queira viver, e à (...) do mal, que quer que todo o sacrifício e o risco do eu presente seja para gozo e bem do eu futuro.

Participa portanto de Deus, vive em Deus, vive Deus. Deus fala-nos astuciosamente na vida dos santos, na morte dos heróis, na voz dos poetas. Ensina-nos, melhor que nenhuma Bíblia, que nós não somos nada na nossa vida pessoal de todos os dias; que só alguma coisa somos quando abdicamos de nós, quando nos entregamos, de nós, que somos a limitação e a morte, a Deus, que é o infinito e a vida.

O único sermão da montanha é a cruz no alto do calvário, a vera comunhão a do espigão final na ponta de uma lança, a única vida — o único prazer — a morte dolorosa do crucificado.

Estes heróis não morrem, nascem. Morreu a carne para viver a a1ma. O seu gesto foi violento. E que arremessaram de si, com ímpeto, a túnica do corpo, sacudiram de seus pés, o pó das estradas da vida.

Reconheceram, reconhecemos, o seu acto ainda que eles [...] no agi-lo que a túnica da vida é uma mortalha, cada corpo um caixão; cada lar humano um jazigo de que a incerteza tem a chave no cemitério.

O herói, ao ser herói, não é o ser que ama, ou amou, a carne; o seu acto de herói é todo espiritual.

Reza com o seu acto; unge-nos com o seu exemplo; abençoa-nos com a sua morte.

Aprendamos a compreender os heróis, os santos, os poetas.

Não olhemos para o lado que lhes mancha os pés, porque pisam o chão da vida; não ao pó que lhes acinzenta as vestes, porque é o vento do mundo que ergue a poeira das fraquezas dos caminhos de desilusão.

O Herói é o seu heroísmo só; o Santo é só a hora em que ajoelha, é só o gesto em que dá o pão que lhe faz falta e a veste que o escuda do frio; o Poeta é apenas a sua obra.

Os meus olhos turvam-se de lágrimas; a minha alma ajoelha e reza. O que de poeta haja em mim fica-lhes nos pés e lava-lhos da poeira do Irreal, unge-os do óleo espiritual que guardo no escrínio da minha devoção. E quando me dizem chasqueando: guarda a tua compaixão e a tua (...) para os pobres e para os infelizes, eu sorrio, porque essa foi a observação de Judas.

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

 - 186,7.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.