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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

INTERVALO DOLOROSO [c]

L. do D.

INTERV[ALO] DOL[OROSO]

Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o criador de mim-próprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.

Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até à alma estou despido de saber ter um esforço.

Os fazedores de sistemas metafísicos, os (...) de explicações psicológicas são ainda piores no sofrimento. Sistematizar, explicar o que é senão (...) e construir? E tudo isso — arranjar, dispor, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!

Pessimista — eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu sofrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um encolher de ombros tenho — tão fundo me pesa o meu desdém por eles — para o seu sofrimento.

Mas sou [?] quem crê que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O único facto importante para mim é o facto de eu existir e de eu sofrer e de não poder sequer sonhar-me de todo por fora de me sentir sofrendo.

Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.

A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado (e o pode ver [?]).

Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é. Mas eu sofro com coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais, que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter génio.

A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante eles eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!

E este livro é um gemido. Escrito ele já o Só não é o livro mais triste que há em Portugal.

Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem falsas ou mínimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, aparte...

Entre mim e a vida...

De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos místicos [?] e dos boémios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra [em] casa pela janela da observação e pela porta do pensamento.

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

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"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.