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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

DIÁRIO AO ACASO

L. do D.

DIÁRIO AO ACASO

Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma chama ao vento.

Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes, não a expressão que eles realmente têm, mas a expressão que teriam para comigo se soubessem a minha vida, e como eu sou, se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e tímida anormalidade da minha alma. Em olhos que não me olham, suspeito troças que acho naturais, dirigidas contra a excepção deselegante que sou entre um mundo de gente que age e goza; e no fundo suposto de fisionomias que passam gargalha da acanhada gesticulação da minha vida uma consciência dela que sobreponho e interponho. Debalde, depois de pensar isto, procuro convencer-me de que de mim, e só de mim, a ideia da troça e do opróbio leve parte e esguicha. Não posso já chamar a mim a imagem do ver-me ridículo, uma vez objectivado nos outros. Sinto-me, de repente, abafar e hesitar numa estufa de mofas e inimizades. Todos me apontam a dedo do fundo das suas almas. Lapidam-me de alegres e desdenhosas troças todos que passam por mim. Caminho entre fantasmas inimigos que a minha imaginação doente imaginou e localizou em pessoas reais. Tudo me esbofeteia e me escarnece. E às vezes, em pleno meio da rua — inobservado, afinal — paro, hesito, procuro como que uma súbita nova dimensão, uma porta para o interior do espaço, para o outro lado do espaço, onde sem demora fuja da minha consciência dos outros, da minha intuição demasiado objectivada da realidade das vivas almas alheias.

Será que o meu hábito de me colocar na alma dos outros, me leva a ver-me como os outros me vêem, ou me veriam se em mim reparassem? Sim. E uma vez eu perceba como eles sentiriam o meu respeito se me conhecessem, é como se eles o sentissem na verdade, o estivessem sentindo, e sentindo-o, exprimindo-o naquele momento. Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho, multidões me cercam. Não tenho para onde fugir a não ser que fuja de mim.

Ó grandes montes ao crepúsculo, ruas quase estreitas ao luar, ter a vossa inconsciência das (...) a vossa espiritualidade de Matéria apenas, sem critério, sem sensibilidade, sem onde pôr sentimentos, nem pensamentos, nem desassossegos de espírito! Árvores tão apenas árvores, com uma verdura tão agradável aos olhos, tão exterior aos meus cuidados e às minhas penas, tão consoladora para as minhas angústias porque não tendes olhos com que as fitardes nem alma que, fitável por esses olhos, possa não as compreender e troçá-las! Pedras do caminho, troncos decepados, mera terra anónima do chão de toda a parte, minha irmã porque a vossa insensibilidade à minha alma é um carinho e um repouso... [...] ao sol ou sob a lua da Terra minha mãe, tão enternecidamente minha mãe, porque não podes criticar-me sequer, como a minha própria mãe humana pode, porque não tens alma com que, sem pensar nisso me analises, nem rápidos olhares que traiam pensamentos de mim que nem a ti própria confesses. Mar enorme, meu ruidoso companheiro da infância, que me repousas e me embalas, porque a tua voz não é humana e não pode um dia citar em voz baixa a ouvidos humanos as minhas fraquezas, e as minhas imperfeições. Céu vasto, céu azul, céu próximo do mistério dos anjos [...] (...), tu não me olhas com olhos verdes, tu se pões o Sol a teu peito não o fazes para me atrair, nem se te (...) de estrelas o antefazes para me desdenhar... Paz imensa da Natureza, materna pela sua ignorância de mim; sossego afastado [...] e dos sistemas, tão irmão no teu nada poder saber a meu respeito... Eu queria orar à vossa imensidade e à vossa calma, como mostra de gratidão que nos traz o poder amar sem suspeitas nem dúvidas; queria dar ouvidos ao vosso não poder-ouvir [...] dar olhos à vossa sublime [...] e ser objecto das vossas atenções por esses supostos olhos e ouvidos, consolado de ser presente ao vosso Nada, atento, como de uma morte definitiva, sem esperança de outra vida, para além dum Deus e da possibilidade de seres [?] voluptuosamente velho e da cor espiritual de todas as matérias.

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

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"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.