Nas épocas de passagem das sociedades,
Nas épocas de passagem das sociedades, em que uma ordem de conceitos se desfez (desfaz) e outra se não formou ainda, sói haver, na superfície das elaborações, certas contradições e incongruências a que se pode aplicar por metáfora o nome de asperezas ou rugosidades. Querer arrancá-las ou expungi-las seria pouco criterioso, pois que elas trazem, na sua substância as novas formas, ainda tenues, que hão-de dar viço e arcabouço às épocas futuras. Tão-pouco caberia tratá-las de modo que se pudesse dizer que as limávamos, pois que de tão ténue consistência elas se revelam, que limá-las - pois que limar implique esforço e pressão, - importaria, com o acréscimo da hipocrisia, destruí-las. Por isso não pode o crítico sagaz dar-se outro escrúpulo a cumprir que não o de as ir abatendo levemente, roçando por elas, com mão cuidadosa, a lixa das levezas opinionativas.
Esta, e não outra a razão, porque o título destes breves opúsculos não podia ser outro do que Lixa. Parecerá talvez dum desconforto imediato para as suficiências do senso estético; o escrúpulo, porém, do nome justo deve sustar a tempo as irreflexões dos impulsos azedos. Primeiro há-de ser cuidada a justeza na aplicação dos nomes, que a cura de quanto possam (podem) ferir os tímpanos sensíveis dos argutos.
Quando mais não fosse, bastaria dar ao sentido do título outra entoação espiritual, para que ele calhasse ao intuito destes folhetos com uma coincidência geométrica; a crítica, por sua natureza, que não só pelo seu género na gramática, é feminina. Que outro nome pois devia competir a um folheto cujo propósito é crítico do que Lixa, pois que lixa pareça o feminino de Lixo, e Lixo seja esta sociedade?
Quando estas razões não bastassem para que estes prolegómenos de panfleto lograssem para o corpo dele um acolhimento condigno, terão que falar pelo merecido desse acolhimento as laudas, que se seguirão, do folheto propriamente dito.
Os sensacionistas, de quem não sou, embora os ame.
O falso e o longínquo da crítica que lhes foi feita data, não tanto da estranheza da novidade, como da magra cultura dos críticos. Nós não temos, na própria região literária, um arcabouço de crítico que deveras o seja; quanto mais não nos faltará, entre os profissionais apressados do jornalismo, quem com razoável escrúpulo e acerto meça as intenções e as competências de escritores que nos surgem desusados?
Uma cultura verdadeira, um estudo acurado da literatura e da arte (tal qual nos reste) dos antigos, assim como uma atenção desvelada aos movimentos, que se têm dado no decurso já longo das literaturas europeias, desde que as nacionalidades modernas se constituiram linguisticamente, não dá azo a grandes pasmos diante de quem quer que seja que se apresenta em novos trajos na recepção hebdomadária da república das letras.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
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