Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Bernardo Soares

Houve tempo em que irritavam aquelas coisas que hoje me fazem sorrir.

L. do D.

Houve tempo em que me irritavam aquelas coisas que hoje me fazem sorrir. E uma delas, que quase todos os dias me lembram, é a insistência com que os homens quotidianos e activos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem sempre o fazem, como crêem os pensadores dos jornais, com um ar de superioridade. Muitas vezes o fazem com carinho. Mas é sempre como quem acarinha uma criança, alguém alheio à certeza e à exactidão da vida.

Isto irritava-me antigamente, porque supunha, como os ingénuos, e eu era ingénuo, que esse sorriso dado às preocupações de sonhar e dizer era um eflúvio de uma sensação íntima de superioridade. É somente um estalido de diferença. E, se antigamente eu considerava esse sorriso como um insulto, porque implicasse uma superioridade, hoje considerco como uma dúvida inconsciente; como os homens adultos muitas vezes reconhecem nas crianças uma agudeza de espírito superior à própria, assim nos reconhecem, a nós que sonhamos e o dizemos, uma qualquer coisa diferente de que eles desconfiam como estranha. Quero crer que, muitas vezes, os mais inteligentes deles entrevejam a nossa superioridade; e então sorriem superiormente, para esconder que a entrevêem.

Mas essa nossa superioridade não consiste naquilo que tantos sonhadores têm considerado como a superioridade própria. O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção.

Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.

Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido para nós na proporção em que o pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo que as da realidade. Que me importa que o papel-moeda da minha alma nunca seja convertível em ouro, se não há ouro nunca na alquimia factícia da vida? Depois de todos nós vem o dilúvio, mas é só depois de todos nós. Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que ele lhes seja feito, e, como Maquiavel, vestem os trajes da corte para escrever bem em segredo.

15-5-1930

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

 - 360.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.