O VENCEDOR DO TEMPO - Serzedas
Serzedas
Donde vem a Verdade-mais-erro de toda a teoria filosófica?
Cada um de nós é Deus sendo ele, é Deus pensando-se ele . Como, por isso, cada um de nós é Deus, cada um de nós vê a verdade, tem a verdade em si. Mas como cada um de nós, é, por pensamento de Deus não-Deus, não-ser, é erro.
Pensamo-nos como Deus.
Somos determinados, porque (...). Somos livres porque somos Deus, e porque Deus, somos o determinante determinando-se a si-próprio, sendo livre, portanto, porque o determinar-se a si é ser livre.
Dos sistemas filosóficos os positivos erram por incompletos ; os negativos por parciais ; os criticistas e cepticistas por (...). Todo o sistema positivo, o materialismo, por ex., peca por não ir até ao fim. Tudo é matéria, diz. É certo. Mas a matéria é o total pensamento dela. Portanto, tudo é matéria quer dizer que tudo é Deus, porque é o ser .
O ser, para ser outro, tem de ser não-ser. Por isso a verdade para ser humana tem de ser erro.
Mas o não-ser como existe? Só para o pensamento que o pensa como sendo não-ser . O não-ser é o não-ser ; tem um ser , que é o do não-ser; pertence ao ser portanto.
Ser tem dois sentidos; o de ser absoluto , por ser para si, no que absolutamente, pode ter; o de ser , como oposto a não-ser, que tem para nós (...).
O não-ser existe, é, como não-ser . Pensado como não-ser, existe, porque como não-ser é pensado. Mas, para além deste pensamento não é, porque é não-ser. Não nos é possível pensar o não-ser como não sendo, porque pensar é fazer ser , e portanto pensar o não-ser é fazê-lo ser, como não-ser.
Há pois 3 formas de ser:
(1) Ser como ser, em si, além de absoluto. (Deus como ser em si e para si existe).
(2) Ser absoluto envolvendo em si o não-ser e fazendo-o ser. (Deus como para nós existe).
(3) Ser relativo (...). (Deus como em nós existe.)
É-nos impossível pensar ser sem como oposto a não-ser, ser como não sendo não-ser, ou o não-ser como ser sendo não-ser. O ser como ser, e o não-ser como não-ser são-nos impensáveis. Pensar o ser absolutamente seria (...); pensar o não-ser seria não pensar, o que nos é impossível quando pensamos. Isto é assim, porque somos ser e não-ser.
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Tudo quanto existe envolve contradição, porque envolve o ser o ser e o não-ser ao mesmo tempo. Porque envolve o ser quanto a nós, e não ser quanto a Deus. Mas o que é esse nós? A condição da existência racional é não envolver contradição; a da ex[istência] real é precisamente o envolvê-la. Mas então como se dá o acordo entre o racional e o real? Esse acordo é como que parcial. Esse acordo toca na realidade pelo que ela tem de ser ; não pelo lado de não-ser. Assim o movimento é racionalmente provado, mas permanece racional-realmente inconcebível. É que o ser é racional; o não-ser irracional; porque o racional é essencialmente o que é ; e o irracional o que não é . Veja-se, note-se, de resto, a própria expressão não-ser , como é um nada real para o pensamento. Assim o irreal do mundo.
Só Deus é que está acima do ser como do não-ser; superior à possibilidade de contradição; acima de lhe haver mesmo um não-Deus oposto. Bem sei que isto se torna incompreensível, mas com a nossa limitação, não podemos senão chegar a este apontar ridículo para uma porta fechada.
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O pensamento em si está fora do tempo e do espaço; é anterior a eles. Sentimento e vontade é que exigem tempo e espaço . A percepção é que está no tempo e no espaço; não o íntimo pensamento basilar na percepção. À percepção, portanto, é que estão ligados (limitados todos) sentimento e vontade.
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A vontade é apenas a consciência de um movimento do nosso espírito em relação e em direcção ao exterior, ao qual corresponde um movimento centrífugo no nosso sistema nervoso. Ora já Ihe provei que a qualquer movimento no espaço corresponde uma ideação no tempo; portanto a esse movimento centrífugo deve corresponder uma ideação centrífuga. A isso chamamos nós vontade.
— «O sentimento e a vontade», continua o Professor Serzedas, «são os resultados materiais do indivíduo ser limitado como pensamento. Como a ferrugem ataca o ferro inusado, assim o sentimento e a vontade são as consequências naturais de sermos cada um de nós um pensamento limitado. »
— «Mas», objectei, «nesse caso porque é que nós, sendo mais pensamento do que por ex., um átomo, temos mais sentimento e vontade — e não menos, como seria de esperar, sendo as coisas como o Professor diz...»
— «Porque, meu caro amigo, dentro do número quanto maior um número é mais número é sem dúvida, mas tão longe do infinito está o menor como o maior número. De modo que não tendo nós vantagem alguma sobre o átomo em absoluto , o que somos é mais complexamente limitados do que ele, donde segue que mais complexa e completamente devemos apresentar o sentimento e a vontade, estigmas da limitação. Compreende?»
— «Perfeitamente, perfeitamente.»
— «O caso é o seguinte: o átomo ocupa por exemplo na escala dos seres o lugar três e um homem o lugar dois milhões. Ora 3 está mais perto , por assim dizer, de zero onde, idealmente, a escala principia, como idealmente acaba em infinito. Ora, como já lhes provei, este zero é outro modo de dizer infinito , de modo que 3 está ao mesmo tempo mais perto e mais longe (por assim dizer) do infinito do que 2 milhões, isto é, nós; é mais e menos pensamento do que nós somos. Analisando de perto as naturezas comparadas nossa e a do átomo ver-se-á como as partes concordam connosco. É sempre a concordância do real com o pensamento. Assim vemos que o átomo concebe, deve por força conceber, o universo como uma coisa vaga, vazia, irreal. Ora aqui está no que o átomo é mais pensamento do que nós, em que Deus está mais visível no átomo do que em nós; para ele sem dúvida que o mundo é irreal. Assim o mais baixo para o pensamento corresponde-se com o mais alto... Para nós o mundo existe muito mais realmente do que para o átomo; o que quer dizer que pensamos mais (...). A identidade dos contrários — vê-se meus amigos — não é uma palavra vã. É preciso, porém, só saber interpretá-la.
Por que é, por exemplo, que o materialismo extremo — aquele que nem a ideia de causa deixa de pé —, se confunde com o idealismo extremo? Porque produz o Hegelianismo materialistas complexos e completos?
Repare-se que a evolução do mundo é uma evolução em complexidade.
A nossa diversidade do átomo é em complexidade; isto é material. A evolução deve ser rectilínea em pensamento.
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— «Reflectindo bem», continua o professor Serzedas, «não há sentimento nem vontade. Porque o essencial para que os haja é que delas haja de algum modo consciência. Implicam-na. Logo, se lhes é basilarmente necessária a consciência, como a todo o facto psíquico, segue, meus caros amigos, que são apenas como qualquer coisa do mundo externo, dados da percepção... Da percepção interna, direis, e portanto, não da percepção propriamente. Demoremo-nos aqui; há aqui que analisar.
O sentimento e a vontade são a consciência de movimentos ou centrípetos (sentimentos) ou centrífugos (vontade): eis tudo. Ora para que cada um de nós possa ter essa consciência é preciso que a tenha em si só como indivíduo, isto é, como sendo aquela percepção, sua e não de outro. Resulta daqui que se dá uma limitação da consciência, e o sen[timen]to meu não é senão o sen[timen]to de nós como consciências parciais, limitadas, imperfeitas, (números)... É evidente que esta consciência de si como limitado deve dar qualquer coisa de novo ao psiquismo.
De mais a mais o sentir uma realidade dentro de nós ...
Deus não sente nem quer, mas sente e quer porque em nós quer e sente, limitado em nós (...).
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— «O antropomorfismo...», disse eu.
— «O antropomorfismo», replicou o professor, «tem isto de errado: que não considera que o que nós chamamos sentimento e vontade não são coisa que Deus possa ter, nem sequer concebido como personalidade. Sentimento e vontade são faculdades que só um ser limitado, inabsoluto pode ter. Somos, não o pensamento — isso Deus é, para com o mundo, em relação ao mundo — mas fragmentos de pensamento, formas de pensar, números na série das formas de conceber. Do facto de sermos limitadamente pensamento (porque cada número é limitado) vem que, como não podemos ter uma concepção total integral do mundo, nada podemos (...) nem criar; pelo que temos de nos esforçar por visionar o que vamos fazer — daí a vontade. O pensamento absoluto totalmente exclui, porque totalmente inclui e contém, sem obrigadamente a conter — a vontade ... Do mesmo modo o sentimento é o resultado de cada um ter o seu mundo, (...) e do esforço da «vontade».
Falar na vontade de Deus, ou em qualquer sentimento de Deus eis o erro. Deus concebido por nós (em si não sabemos o que é) é o pensamento absoluto, ou o pensador absoluto . A única faculdade nossa que tem que ver com o absoluto é o pensamento; e a percepção (que é «pensamento», pelas razões que já sabe) a única que concebe uma realidade. Tanto o sentimento como a vontade são individuais.
A única «faculdade» que podemos conceber Deus como tendo, admitindo, ao conceber, que isso é relativamente a nós, é o pensamento.
Uma lei é a exteriorização de um pensamento. É com justiça que se chama leis às ordens dos fenómenos, e leis às que o homem impõe às sociedades... Estas são imperfeitas, porque imperfeito é o nosso pensamento; mas é justa a identidade do nome, porque há identidade de causa.
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Nós não sabemos como se dão a passagem de momento a momento que constitui a duração, e a passagem de lugar a lugar que constitui o movimento; mas sabemos que, logicamente — note este termo — que logicamente a duração e o movimento estão implicados nos conceitos de momento e de lugar; em que de modo igualmente lógico, sabemos que se pode passar do momento 1 ao momento 2, do lugar 1 para o lugar 2. Como isso em si se faz, não sabemos, porque nada sabemos em si , nem o que em si é o número nem o que em si são tempo e espaço. Sabemos apenas que são ideias.
Há, porém, uma conclusão ainda mais importante. É que só o pensamento nos dá como mentáveis a duração e o movimento, mas a percepção no-las dá também como realidades. Daqui se conclui que o pensamento é a base da realidade, que o mundo é uma coisa pensada.
O que é portanto a realidade? A realidade é o pensamento; não provém dele; é-o. Se as nossas alucinações, os nossos sonhos não são realidade é que o nosso pensamento, não sendo absoluto, integra-os apenas no mundo de nós mesmos, e não no mundo propriamente dito. Ainda assim um pensamento muito forte, isto é, muito lúcido, (...)
O pensamento visiona; o visionar do pensamento absoluto é o mundo. É visionado por nós e em nós, numericamente; por isso o vemos todos de um modo basilarmente igual e superficialmente diverso.
Quando visionamos uma coisa, o próprio visionar é criá-la; a própria visão dela é ela existir. Como porém, o nosso pensamento não é absoluto, essa criação não é absoluta — isto é, não pertence ao sistema do mundo.
A percepção, a memória, a imaginação «continua o próprio Serzedas», são actos em nós idênticos ao acto criativo do mundo; reproduzimos a criação, falhando em fazê-la uma criação absoluta, simplesmente porque não temos o pensamento absoluto.
Ora, sendo o pensamento uno, chegamos à conclusão que pensamos porque Deus pensa em nós, e pensamos limitada — porque diversamente, e diversa porque numericamente.
Para Deus pensar o número foi realizar o número em si totalmente, não em si, ainda que em si, em cada número individual.
Quando pensamos o universo, quando o visionamos, a nossa visão do universo e esse universo como visionado são a mesma coisa. Se concebermos em lugar do nosso pensamento, um pensamento absoluto, veremos que ele, logicamente, não pode conceber senão uma coisa absoluta, não um universo portanto, mas a ideia do universo, o infinito da série quanto a universo, a possibilidade de todos os universos portanto. Essa concepção, fragmentada por nós, dá o resultado que, sendo absoluta é criadora, mas sendo limitada em cada um de nós diferente e individual, é não ideia, não possível, mas realidade, real. Daí cada consciência ver um universo real, daí o ver cada um um universo diferente, em graus e apenas graus de limites diferentes, desde o átomo ao homem.
O ser o pensamento divino absoluto dá resultado serem os nossos universos basilarmente iguais nisto em serem reais , e basilarmente parecidos nisto em serem pensados , portanto sujeitos a leis (porque a lei é a forma do pensamento). Daí a realidade que não é mais que o que de fundamento comum há nos nossos pensamentos.
A verdade é a base comum a todas as consciências no ter consciência. Eu, raciocinando assim, remonto a Deus. Não posso compreender intimamente porque são parte do concebido, mas posso compreender, dentro dos meus limites, até onde lhe mostrei que compreendi.
Tudo quanto pensamos é real, verdadeiro... A mentira, a irrealidade é o nada, e o nada o nada é. Tudo o que pensamos é real, porque o pensamos, e o pensamento é a realidade e realmente Deus é que em nós diferenciadamente pensa. Não é real porque diferentemente pensa, porque numericamente pensamos...
Por isso todos os sistemas filosóficos são certos, e criados todos. Só certos no que afirmam, porque (...), e errados no que negam, porque negar é sempre erro metafísico — o único sofisma — pois é afirmar que uma coisa não é , quando a própria discussão dessa coisa (que temos para podermos afirmar que ela não existe) é, por pensada, existente.
É assim que o panteísmo tem razão em dizer que Deus pensa em nós, e o antipanteísmo em dizer que pensamos
fora de Deus;é assim que o materialista tem razão porque o mundo é real, e o idealista também porque o real não é real ...
A prova que Deus pensa em nós é que temos corpo. Deus pensa-nos, por isso fisicamente somos; por isso também pensamos. O nosso corpo é a mostra visual da nossa limitação.
Um fakir que, com uma lucidez que exclua tudo, se visione suspenso no ar, encontrar-se-á suspenso no ar. Pode não se lembrar da intensidade com que viu, mas isso é mais uma prova: indica que a atenção foi tão tomada que não deixa lugar à consciência da atenção, e à memória dessa atenção portanto.
O fantasma, é, quanto a mim, possível. É uma enorme visionação inconsciente, cuja intensidade, superior à normal, vai meio a caminho de criar uma realidade.
— Mas no fantasma de facto desconhecido ...
— Isso é mais complexo, mas explicável ainda assim...
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Há bons argumentos, e há muitos — continua o professor Serzedas — pelos quais com verosimilhança mais que aparentemente igual se pode provar ora que a vontade, ora que o sentimento, ora que a ideia é a base do sistema do mundo. A minha crítica superior reconhece, como já lhes disse, em cada um destes sistemas o por onde acertam e o por onde erram. Realmente ora parece basilar a ideia porque parece que é porque tudo é concebido que existe; ora parece essencial o sentimento, porque o sentimento é que dá a nota do indivíduo perceptor, ficando sem ele ora a realidade exterior, individualizada e inrealizada nas divergentes e interdiferentes percepções pessoais; ora parece que é na vontade que está a verdade de tudo porque, para irmos de chofre ao argumento essencial, sendo a vontade o que produz o movimento, e sendo o universo incontestavelmente um vasto movimento, em verdade nos parece evidente que haja universalmente uma vontade, qualquer coisa vontade, criando ou mantendo ou (...) — de qualquer modo fundamentalmente sendo. Até aqui não é contestável que igual força e igual valor assiste a todos os argumentos que lhes apresentei. Por aqui são verdadeiros incontestavelmente. Mas como é fatal que aconteça, são, por outro lado, falsos. Porque um raciocínio mais profundo, ao analisá-los, sente-lhes igual o valor, no que de meio-verdade, e portanto de erro, contém. É que ideia, sentimento e vontade supõem todos uma coisa que lhes é comummente íntima — a consciência. São formas da consciência na sua limitação. De maneira que os argumentos justos apresentados em favor de qualquer das formas de psiquicamente ser tem razão no que cada um ao afirmar basilar ou a i[deia], ou o s[entimento], ou a v[ontade], afirmar basilar a consciência — base de todas elas, e não tem razão no que afirma basilar não a c[onsciênci]a em si mas uma ou outra forma da sua limitação, por assim dizer, ou, para bem falar, do seu não-ser.
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Note-se como, assim como o pensamento classifica em séries, o mundo está disposto em géneros e espécies.
Note-se também que entre 9 e 11 há menos distância do que entre 11 e 17 mas pertencem (11 e 17) à mesma série decimal. Exactamente o pensamento e a realidade.
Kant viu só metade dos factos.
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— «Foi então que eu compreendi que as noções de tempo e espaço não tinham ainda sido suficientemente analisadas. Reanalisei-as. Comecei por ver que o nosso conceito de espaço era mais abstracto do que o de tempo, sem dúvida porque a nossa análise do espaço objectivo, é o mais fácil. Vou explicar. Na nossa noção de espaço cabem três ordens de coisas: o espaço, o lugar e o movimento. O espaço (em si) é difícil de definir, por ser primário à compreensão; podemos, porém, dizer que o espaço é a condição do lugar, ou dos lugares — pouco importa — porque «lugar» inclui «lugares». Do mesmo modo o lugar é a condição do movimento, que outra coisa não é, rudimentar e apressadamente definido, do que a mudança de lugar. Chegado aqui transplantei para a análise da noção do tempo os resultados desta análise. Fi-lo porque há analogia absoluta entre as naturezas [...] do tempo e do espaço, podendo dizer-se que o tempo é o espaço interior. Leva-me isto a conclusões de originalidade perturbante. Vi que, do mesmo modo concebido, o tempo se resolveria em tempo, propriamente dito, condição do momento, ou dos momentos; esse momento (correspondente a lugar, lugar do tempo) e em duração que é a mudança de momento para momento, como o movimento propriamente dito a é de lugar para lugar.
Chegado aqui, prossegui mais intensa e apertadamente na minha análise. Perguntei-me que outras ideias além das de tempo e espaço envolverá essa consideração de espaço e tempo. Havendo de comum a espaço e tempo a sua natureza de condições, o que haveria de comum entre lugar e momento, entre movimento e duração? Que novo elemento entrará na de tempo e espaço para produzir o momento e o lugar? Esse elemento só podia ser o número. Com efeito, admitida a co-existência do número com tempo e espaço, resultaria a existência de um número no tempo e no espaço; uma infinidade de números porque o número não tem fim. Daí me veio o notar que o tempo e o espaço não são em si infinitos; sendo a noção de infinito trazida para eles pela noção de número, que é a que traz consigo a noção de infinito (contraposta à de finito que cada número é).
Passei a analisar as duas ideias análogas de duração-movimento. Senti-me falhar aqui. Porque não compreendia como se pode dar a duração e o movimento, como se dá a passagem de um momento para outro, de um lugar para outro. É o velho enigma de supor tudo átomos, com a velha e óbvia objecção: e o que está entre os átomos? Entre lugar e lugar deve haver lugares, entre momento e momento, momentos.
Ainda assim não desesperei. Apliquei-me mais detidamente ainda à análise cuidadosa dos conceitos que, até ali, nitidamente apreendera. Procurei a ideia demoradamente: vi que só podia ser a de infinito que o conceito de número envolvidamente me trazia. Demorei-me, com êxito assombroso na análise dessa ideia. Fiz uma descoberta metafísica: a dos vários infinitos.
O primeiro ponto a notar era que a ideia de infinito vinha da ideia de número. De que forma se nos apresenta a ideia de número? Sob a forma de série, começando em 1 e não acabando. Mas — e eis o ponto revelador —, começando em 1. Isto é o infinito numérico, começa mas não acaba , tem um ponto de partida mas não um de chegada. A revelação deste ponto deslumbrou-me. Pus-me objecções. Ponderei que uma recta podia ser prolongada ao infinito de ambos os lados, mas, reflectindo vi que era apenas do mesmo modo como se pode arranjar uma série ascendente e uma descendente, e que, idealmente o que fazíamos era tomar um ponto ideal e daí tirar rectas em linha recta para ambos os lados. Duplicávamos, vi, o proceder; mas o proceder essencial ficava. Tornou-se-me pois estonteadamente evidente este facto espantoso; o infinito numérico começa mas não acaba.
Apliquei esta noção às ideias primárias do tempo e do espaço, e a noção falhou-me. Aí havia o infinito absoluto. Só onde havia lugar e momento é que podia haver infinito numérico, começado ; porque era forçoso partir de um lugar e de um momento; daí para o infinito. Nas ideias primordiais de tempo e de espaço, não havendo, por primordiais, as secundárias de lugar e momento havia um mais-que-infinito, sem princípio, nem fim, nem ponto, nem qualquer coisa de concebível (e que realmente só pela noção de número, concebemos).
Só nas ideias de tempo e de espaço encontrei um superinfinito um infinito absoluto, sem princípio nem fim; só na de número encontrei um infinito com princípio sempre mas sempre sem fim, vi analisando as de duração e de movimento que tinha aí um infinito curiosíssimo, um infinito com principio e fim.
— «Eh?»
— «Vou-lhe explicar, já Ihe vou explicar ... Suponhamos a série 1, 2, 3, 4, etc. Ora o que é movimento ou duração? Passar do momento ou lugar 1 para o momento ou lugar 2 e do m[omento] ou l[ugar] 2 para o m[omento] ou l[ugar] 3, e assim por aí fora, indeterminadamente. Ora, era já o velho argumento de Zenão o Eleático que passar de um lugar a outro implica esta coisa inexplicável — atravessar um infinito, porque dizia Zenão, para passar do lugar 1 ao lugar 2 temos de atravessar o espaço que está entre o lugar 1 e o lugar 2; para o atravessar todo temos de o atravessar metade; antes disso metade da metade e, assim, involuntariamente nos encontramos a ter de atravessar um infinito para passar de 1 a 2. E daqui se tirar a conclusão idealista que o movimento, logicamente impossível, era uma ilusão nossa.
O problema não me amedrontou. Atentamente o ponderei. Eu bem achei saída. A primeira coisa que notei foi — já lho disse — que o infinito de que aqui se trata tem a especial característica de ter princípio (neste caso o lugar ou momento 1) e fim (neste caso o lugar ou m[omen]to 2). Porque o facto é que há movimento e duração, ainda que só para nós; mas mesmo como ilusão deve ter regras, condições e razões lógicas de o ser. É outra vez o velho problema do que está entre os átomos se os átomos são tudo e nada mais há. De repente vi, não sem ouvir, (creio porque vi alto e em bom som) como é fácil a solução do problema; como do enunciado dele logicamente se impõe.
*
Com efeito, tomando o caso dos átomos, se os átomos são tudo e nada mais há , entre eles não há nada , porque não há «entre eles» nenhum — são contínuos. O nosso erro era, pensando o nada, pensá-lo, ilogicamente, como sendo alguma coisa . [...]
— E o tal infinito com princípio e fim que eu encontrei na duração e no movimento disse ter-me dado a chave do problema. Porque infinito com princípio e fim é uma expressão contraditória e o contraditório é o inexistente; basta ver que a única coisa que envolve contradição pensá-la, é o não-ser. Portanto o infinito com princípio e fim, o infinito de zero é o nada .
Isto, porém, não me bastava. Era essencial uma análise mais próxima e rigorosa. Perguntei a mim mesmo se em 1, 2, 3, etc., de lugar e momento não são pontos ideais , visto haver uma infinidade deles. Depressa, porém, me convenci do erro desta hipótese. 1, 2, 3, etc., não [são] senão pontos ideais tratando-se do tal infinito com princípio e fim que é nada. Observe que nada dividido pelo infinito dá nada ; e que, igualmente, um dividido pelo infinito, dá nada. Ora, «ponto ideal» quer dizer «nada», porque ponto é alguma coisa, ideal é nenhuma coisa; tem contradição nos termos, portanto nada , como já lhe provei.
«E o que quer dizer o facto que qualquer número dividido pelo infinito dá nada ? Simplesmente que nenhum número é divisível pelo infinito. Alguma coisa dividida por alguma coisa dar nada é um absurdo; temos pois que não é divisível. É sempre a nossa regra da contradição.
«Reatando. Como então chegar à noção exacta do que é lugar e momento? Continuei a análise, e com êxito. O infinito dividido pelo infinito dá, claro está, um. Segue daqui que a infinidade do espaço contém uma infinidade de lugares. Ora este um não significa tamanho mas sim unidade. Segue, pois, que o lugar pode ter o tamanho que precisa que há-de haver sempre uma infinidade deles no infinito. A razão é simples: qualquer coisa multiplicada pelo infinito dá infinito.
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Vi que para transformar as ideias de tempo e espaço nas de momento e lugar e estas nas de duração e movimento era preciso apenas uma coisa: pensá-las. Com efeito, pensando a ideia de espaço logo me ocorrerá a ideia de lugar, como logicamente contida na ideia de espaço , e logo que penso a de lugar me acorrerá a de movimento, logicamente contida na de lugar. Compreendi então que a criação do mundo é um acto de lógica. Dado que o Pensamento supremo pensasse o tempo, logicamente pensaria logo o momento e logicamente, em seguida, a duração.
— «Se o professor me dá licença, observarei que há aí antropomorfismo. O Professor faz o criador um pensamento à imagem e semelhança do seu pensamento.
— «O contrário, o contrário ... Eu não sou um pensamento senão porque Deus é um pensamento. Eu sou pensamento à imagem e semelhança de Deus ... Se é Deus que pensa em mim não sei; mas o que sei é que (...). Pois se não fosse assim como teria eu por real a realidade ; não se dá isso exactamente porque a força criadora do mundo é a mesma do que a força que em mim é perceptora do mundo criado? A diferença está em que o Criador pensa o todo como todo, naturalmente, e eu o todo como parte ; sou um modo de pensar parcial, diferente de qualquer outro. O Criador só é diferente na ideia de o ser de cada um. É o pensamento absoluto.
— «Há ainda uma objecção que me lembrou ainda agora, por certas palavras que o Professor disse mas de que, por não o querer interromper, me esqueci. É isto: (...) logicamente (...).
— «É fácil explicar isso ... não há contradição. Deus em si não é naturalmente um pensamento — é um mistério... Para nós apresenta-se como um pensamento e pensamento é aquela coisa que tem essas leis que o senhor apresenta. O pensamento tem as leis que Deus lhe deu — é pensamento justamente por isso ... Nós — já lhe expliquei — é que somos criados à imagem e semelhança exterior de Deus — pensamos porque ele pensa, pensa em nós, naturalmente...
Faça desta vez o que lhe ensinei a fazer da outra: volte o antropomorfismo ao contrário ...
«Assim como me foi concedido rasgar o mistério do tempo e do espaço, ser-me-á dado o poder de poder usar esta sabedoria, do poder ser super-homem não só no raciocínio mas também na ideação autêntica, na percepção do inaparente. — O mistério primeiro e essencial não o posso, mas também não o preciso saber para isto, para o que tenciono querer ... E quem me diz que esta ciência certa das coisas me não vem de uma obscura já percepção delas, do espírito estar já a caminho da percepção do passado, vindo-me duma experiência ainda inconsciente a minha consciente teoria? Não será por já começar a viajar [...] no tempo que já começo a saber o que é? Há-de ser isto, há-de ser isto. Tudo — raciocínio — tudo deve vir dessa experiência [...]. Mas nisto, por desnecessário, não insisto...
É pelo pensamento abstracto — não [...], como querem os místicos — que nos aproximamos do Criador, porque nos aproximamos do tipo absoluto de inteligência... E o que procura o pensamento abstracto senão exactamente o que o Criador mais de si tem: as energias do ser e do mundo. Não é esta a força suprema?
É pela ideia — não pelo sentimento (que naturalmente é uma forma qualquer de ideia — deixo-lhe isso a raciocinar) — que nós estamos mais perto de Deus.
A ideia, o pensamento é o que em nós há de mais absoluto, de mais tendente a absoluto ... Conceber fortemente uma coisa é criá-la ...
Deus, fazendo-se objecto de si mesmo, pensa-se, e pensando-se nasceram as ideias de tempo e espaço. Daí, logicamente as de número...
Pensa-se como Sujeito e Objecto: daí tempo e espaço ; como não-eu: daí o número , sendo Deus o fora do número; e como pensante: daí o movimento e a duração (...). Nosso pensamento segue as leis que são as da criação: recorda-se realmente. [...]
Deus, consciência (única, suprema) tem (não no tempo) consciência de si; tem consciência de si como Sujeito e Objecto e ao mesmo tempo sujeito.
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O pensamento, no mortal, é uma rudimentar concepção do mundo.
Deus pensa-nos e por nós e em nós. Não pensa senão por nós, em nós e nós — nós sendo o universo inteiro.
O argumento racional prova a indivisibilidade real da matéria; o argumento tirado da experiência igualmente o prova. — Assim todo o raciocínio está de acordo com a realidade.
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Todas as teorias, por absurdas que sejam, cabem no verdadeiro intelectualismo — como verdades e erros. Assim esta, por exemplo, estranha demasiadamente que no momento imagino; que a vida externa é irreal e infixa, que a ciência é um sonho nosso ou que a realidade se anula.
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Uma lei é, em todos os casos, a exteriorização de um raciocínio (pensamento).
Outra prova de que o pensamento é (para nós) o ser. Sentir nada é não sentir, querer nada é não querer; mas pensar nada não é não pensar, é pensar o nada, compreender que nada quer dizer nada. Vemos, portanto que, conquanto não haja vontade nem sentimento do nada (propriamente dito porque o desejo da morte não é do nada), há pensamento, ideia do nada. O nada torna-se alguma coisa perante a ideia. É a criação ex nihilo exemplificada.
Quando o ser pensar o não-ser, o não-ser, por pensado, torna-se alguma coisa — no pensamento; uma coisa que é não-ser porque o é realmente, e que é ser porque é pensado. Digamos o não-ser e, porque se o não-ser não fosse, (...).
Por isso o nosso pensamento compreendendo o mundo e conhecendo-lhe a criação, reprodu-lo (limitadamente); pensando-lhe a criação, recria-o.
Não podemos dizer que para o ser pensar o não-ser importa querer pensá-lo, e que a vontade é um facto da percepção, está portanto dentro e não fora do pensamento, é posterior e não anterior ao pensamento.
Temos como realidades do pensamento ser, não-ser e pensamento. Ora não sendo o mundo o ser, nem o não-ser, forçoso é que seja o pensamento. Daí o compreender o ser como ser e o não-ser como não-ser; compreendendo-se como pensamento, não como realidade.
Bem, mal, — tudo sim — são produtos do pensamento e do sentimento.
Na realidade absoluta, para além do próprio pensamento — que têm que ver os conceitos de bem e de mal, de alegria e de sofrimento?
A percepção é o pensamento do pensamento alheio.
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O horror que então aconteceu, não aconteceu de vagar nem depressa. Aconteceu simplesmente. Vi o professor com aquele olhar vindo para um horror qualquer, vi-o ali estendido no sofá, e vi depois no sofá um robe de chambre apenas, atado ainda, e tendo dentro um fato de pijama abotoado e apertado por completo.
No chão vi luzir uma coisa ... Era uma aliança de ouro. O outro anel em parte alguma se viu ...
Intensificou-se a expressão (...) do olhar, tornou-se mais pavorosa, mas na direcção do que estava. Pareceu (...) chegar a um ponto culminante.
«O Vencedor do Tempo». Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.
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