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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

SEMITIS DESILIENTIS AQUAE

Semitis [?] desilientis aquae

 

No ar frio da noite calma

Bóia à vontade a minha alma,

Quase sem querer viver

Sente os momentos correr,

Como uma folha no rio,

Sente contra si o frio

Das horas fluidas levando

Seu inerte corpo brando.

 

Mais do que isto? Para quê?

Tudo quanto o olhar vê

A mão toca, o ouvido escuta,

A consciência prescruta,

É inútil que se escutasse,

Que se visse ou se pensasse.

 

Entre as margens com arbustos

Luze, na noite dos sustos,

Só o luar repousado,

Ao correr vago e amparado

Do rio deixado em livre

A alma passa, a alma vive.

Ninguém. Só eu e o segredo

Do luar e do arvoredo

Que das margens causa medo.

 

Nada. Só a hora inútil

Só o sacrifício fútil

De desejar sem querer

E sem razão esquecer.

 

Prolixa memória, toda.

Rio indo como uma roda,

Noite como um lago mudo,

E a incerteza de tudo.

 

Recosto‑me, e a hora dorme.

Corre-me o que a noite enorme

Atribui à minha mágoa,

Como um ser murmuro de água.

 

Ninguém; a noite e o luar.

Nada; nem saber pensar.

Raie o dia, ou morra eu

Volte no oriente do céu

O sol ou não volte mais,

Só sempre os tédios iguais

E as horas, calem o medo,

Como o rio entre o arvoredo,

De nocturna consistência,

Com fluida, vaga insistência.

O mal é haver consciência

8-10-1919

Livro do Desassossego po Bernardo Soares. Vol. II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição de textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982

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