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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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António Mora

O classicismo francês ou outro congénere falhou…

O classicismo francês ou outro congénere falhou e caiu na mesquinhez e na inutilidade porque uma sociedade viciada pelo morbo cristão era, do íntimo, incompetente para fazer obra lúcida e progressiva. Ficou na imitação dos clássicos, porque não mais podia fazer uma nação de crentes no cristianismo.

Obra pagã é não só imitar os clássicos, senão que também continuar-lhes a obra. Imitar está dentro do âmbito da acção de qualquer inteligência. Não é qualquer, porém, que se compenetra do espírito duma civilização e segue o seu caminho individual partindo de ali.

O período da civilização cristã pôde admitir dentro de si o progresso porque tinha dois elementos a facilitá-lo. O primeiro era o elemento pagão: assim, todo o movimento de renascença que se deu a dentro do cristianismo, partiu de urna atenção novamente dada à civilização pagã. É excusado que se cite o caso do Renascimento, e o caso menos forte do Romantismo, o qual, ainda-assim, procedeu sobre uma renascença clássica alterada, isto-é, sobre um estudo mais aprofundado da antiguidade clássica do que os chamados «clássicos» modernos tinham feito. Por isso Goethe está cheio de paganismo, como influência; e os autores maiores da Grécia e de Roma andam de sobra na boca de Victor Hugo e de Shelley, os coregos dos dois romantismos nacionais que se seguiram ao da Alemanha. Com o romantismo alemão, propriamente dito, o dos Schlegel, de Tieck e de Novalis, entra com a literatura germânica uma decadência, referindo-nos, por comparação, à precedente literatura de Schiller e de Goethe, se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na sua utilização do que admirava no paganismo.

O outro elemento que tem sido colaborador do progresso na nossa civilização é a Ciência. Como o elemento pagão, este é também inimigo do cristianismo. Nascida entre perseguições, criada entre inimizades, a ciência tem crescido entre conflitos com as forças cristãs, e através de desvios íntimos por via de influências da religião cristina, e de reacções exageradas por pensar de mais no inimigo constante.

O que hoje temos que possa representar progresso, se nos referirmos ao período grego da civilização, mais não é do que produto de utilização extra-cristã desse próprio período, ou de que resultado do trabalho propriamente científico. E o próprio trabalho científico, tão bem, outra coisa não vem a ser do que uma continuação do espírito grego, que trouxe para a humanidade o espírito científico propriamente dito, a substituição do critério objectivo ao subjectivo na interpretação dos fenómenos.

Pouca gente compreende e realiza como a história da humanidade anterior à da Grécia é falha e nula no que se refere às atitudes científicas e lúcidas que hoje nos parecem as mais simples. Por muito que muitos digam amar a Grécia, poucos sabem quanto deveras lhe devemos.

A estética moderna, que é cristã, assenta sobre o desprezo fundamental do mundo-exterior. É feita sobre um elemento curioso a falta de atenção e de concentração, a carência de equilíbrio, e a tibieza da vontade.

Parece a princípio inacreditável que alguma arte assente em elementos destes. Se formos porém a reparar na arte que o cristianismo produziu, e que é toda a arte moderna, salvo episódios, meros episódios, em obras no seu conjunto pecadoras contra a estética, veremos que assim é.

Para tornar de fácil compreensão a n[ossa] tese, partamos dum fenómeno estético de fácil constatação: a elegância feminina. A elegância feminina moderna - cristã, diríamos, se a frase pudesse seguir caminho sem prévio aviso - consta, como todos vemos, da Diversidade, que cada mulher procura imprimir ao seu vestuário e porte, em relação ao porte e vestuário alheios (das outras), no Requinte, isto é, no estudo atento dos detalhes que contribuem para essa Diversidade; e, porfim, no Exagero, necessária consequência de se tomar a Diversidade por principal fundamento da elegância. Que isto se possa negar, não creio, senão que uma atenção apenas no nível das palavras perceba mal o sentido ao que se deixou escrito. Por isso tentaremos fazer compreender a n[ossa] tese por outro método.

Suponha-se que a cada mulher se dava por único traje um lençol, um pano simples, de dimensões possíveis para cobrir o corpo, e que lhe fosse proibido dar a esse pano formas várias, apenas sendo lícito usá-lo tal como era dado. Tendo todas as mulheres que se restringir a isto, e sendo desejo de cada uma distinguir-se em beleza das outras, tinha só um meio de o fazer: tal donaire dar ao seu porte, tal elegância imprimir às dobras do seu manto simples, ao uso do manto, ao seu aspecto, que se distinguisse das outras por isso. Cada mulher era assim forçada a um grande esforço estético para obter a sua elegância, a uma atenção extraordinária à utilização dos menores detalhes do seu vestuário, a uma procura necessária da harmonia dos detalhes, porque, tendo o seu traje, por ser simples, essencialmente unidade, não é senão harmonizando essa unidade que qualquer efeito estético se produziria.

Se a absoluta Diversidade é permitida, a elegância torna-se fácil: basta ter uma inventiva curiosa que saiba encontrar a diversidade; há a encontrar a diversidade em absoluto, o que é fácil, e no outro caso ter-se-ia de encontrar a diversidade dentro de um limite (harmónico) o que é muito difficil.

Assim encontramos a distinção fundamental entre o critério estético pagão e o critério estético cristista. O pagão tinha da beleza esta ideia, de que ela é primeiro harmonia (isto é, perfeição) e depois diversidade; o cristão tem da beleza outra ideia, a oposta, - de que ela é primeiro diversidade, e depois harmonia. Para o pagão a beleza é a Diversidade na Harmonia; para o cristão ela é a Harmonia na Diversidade. Parecendo, pelo som, quase a mesma, estas frases são, por contra, opostas. Para o pagão a Harmonia é o essencial; para o cristão o essencial é a Diversidade. Frutos estas teorias, a primeira de uma atenção dada ao mundo-exterior, de uma cultura da vontade e da concentração; a segunda de uma atenção desviada ou para o âmago do espírito, ou falha, e uma vontade incapaz de se aplicar com cuidado e escrúpulo.

Aquele cujo critério da arte parta da Diversidade por força que há-de buscar na arte mais a Diversidade do que outra coisa. Aquele cujo critério parta da Harmonia, mais do que outra coisa buscará a Harmonia na obra de arte. Cairá o primeiro no erro de acumular elementos diversos só por serem diversos, de quantificar e juntar. Cairá o segundo no erro de simplificar para obter a unidade e a harmonia, de recear abranger um campo muito vasto ou esmiuçar muito o assunto, para que lhe não falhe a Harmonia do Todo, para que se lhe não tornem insuficientes vontade e atenção para reduzir a unidade os elementos de que se compõe a Obra.

Qual destes erros é o mais grave? O primeiro por certo. O erro do pagão é o erro do artista simples, o erro da Criança, digamos. O erro em que cai o cristão é o erro do doente, o erro do Louco, classifiquemos assim. E quem tem razão na sua teoria é o pagão. Porque a essência da arte é a harmonia e não a diversidade; senão (…)

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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