1. Todo o processo civilizacional,
1. Todo o processo civilizacional, toda a evolução da civilização (pelo menos, no que nos respeita; mas por isso em geral assim, por isso que aquilo que nos respeita, a nós hoje, respeita por isso à civilização inteira) tem, até hoje, tido três estádios no seu decurso. O primeiro é composto de todas aquelas vagas civilizações, anteriores à grega, cujo característico especial (sobretudo quando as encaramos de aquém, através da civilização grega, que nos normou) é a inconcatenação cultural das energias nacionais; isto é, em essas nações não se deu uma subordinação de todas as energias que elas possuiam àquela coisa chamada a «cultura», não houve nelas a ideia de civilização propriamente dita, o que nitidamente se prova pela carência, que nelas houve, dos três elementos capitais e essenciais da obra civilizacional consciente: (1) a organização, (2) a ideia de cultura, desligada das ideias de literatura e arte, etc, (3) a noção a um tempo materialista e individualista da existência. Em outros termos, nas civilizações pré-gregas (é util dar-lhes este nome) havia a noção do império, a noção da ciência, a noção da sabedoria, a do bem-estar, e outras assim, porque, mesmo, era impossível que estas noções não fizessem parte do conteúdo mental de psiquismos humanos não-rudimentares já; mas a noção de civilização propriamente tal não existia ainda. - Passada a época grega e a sua descendente diversa, a romana, abriu caminho nas eras a civilização chamada cristã: esta civilização regressa, de certo modo, à forma psíquica das civilizações pré-gregas, e implica, na sua substância íntima, uma regressão com respeito àquela. Tornam a apagar-se, nas consciências - salvo no que restava nelas de fragmentariamente criado pelo ideal imperial de Roma - a ideia de civilização, a ideia de organização, e a ideia do individualismo a um tempo materialista e individualista.
2. Toda a civilização porém nasce da decadência de uma civilização anterior. Para chegar ao seu auge como civilização, tem que (1) extrair dos princípios criados por essa decadência o que de novo eles trazem, (2) ir buscar à civilização que decaiu o que essa decadência apagou, (3) criar elementos novos com que realize essa fusão, eliminação e reconstrução. Só quando, a dentro de uma civilização, aparecem elementos inteiramente desconhecidos tanto à anterior civilização como à decadência que se lhe seguiu, ela toma, de facto, o seu verdadeiro carácter de civilização; mas esses novos princípios têm que estar de acordo com os princípios essenciais da anterior civilização decaída. Na nossa civilização só quando apareceu, em seu nítido fulgor, o princípio científico e a atitude científica se pode dizer que surgiu a base para a verdadeira construção de uma civilização nova.
3. O cristianismo, pelas três origens que teve, trouxe consigo três elementos: (1) pela sua origem plebeia, trouxe o essencial sentimento cristão, tal qual os oprimidos o podiam criar - o sentimento democrático, o da liberdade, igualdade e fraternidade; (2) pela sua origem num meio imperial, qual o romano, trouxe o seu elemento imperialista, de vontade de domínio, de intenso fervor de proselitismo; (3) pela sua origem entre uma mistura de raças e de povos, qual a criou o império romano, o cristianismo trouxe um cosmopolitismo especial, místico mais do que outra coisa. Assim o cristianismo apresenta-se, desde o seu início, com todos os característicos de uma decadência - sobretudo quando se considera em relação ao meio pagão onde nasceu. No que atitude democrática, ele vai contra os princípios de acentuada desigualdade que eram basilares no paganismo; contra o princípio da escravatura, contra o da subordinação da mulher ao homem; contra o da subordinação de povo a povo. No que atitude mística e cosmopolita, o ciristianismo vai contra o basilar conceito da cidade-estado, sobre o qual a vida antiga assentava; vai contra o conceito de patriotismo, tal qual a alma antiga o concebia; vai contra o princípio guerreiro. No que atitude imperialista, ele contrapõe-se, se bem que aqui mais perto pelo menos da noção romana da vida, (...)
Assim, uma vez organizado, o cristianismo não passa de uma decadência organizada. Uma vez organizado, a sua acção dissolvente e imoral mina toda a sociedade antiga, e cria, aqui um império ocidental estremunhado e que se afunda; ali, uma Bizâncio, estagnado resultado do seu espírito corruptor.
Cada vez que se ergue um movimento civilizacional, é nos termos ou do pensamento pagão, ou do instinto pagão, um momento reacordado, que ele surge. Todo o pensamento cristão, que alguma coisa valha, apoia-se, assim, quer em Aristóteles - posto que, por certo, em um Aristóteles entendido apenas em parte, desvirtuado e omisso - ou em Platão. Pensamento seu, filosofia sua, o cristianismo não a tem. De igual modo, toda a reconstrução social é tentada nos moldes do império romano, pagão de sua origem.
Principia o cristianismo por ser doutrinariamente confuso. É-o por várias razões. A primeira é que reúne doutrinas religiosas de todas as espécies (pagãs, judaicas, e outras) e assim se torna um misto de coisas contraditórias. Religião da plebe, ele já de si traz a confusão mental, característica das plebes, no seu seio. Além disso, composto socialmente, como é, de elementos tirados de vários pontos-de-origem, quais o Império, a Plebe, e a Mistura de Raças, ele acumula - vê-se - coisas contraditórias. Tudo isto, que caracteriza bem uma religião da decadência, ao mesmo tempo que o enfraquece como disciplina social, dá-lhe força como doutrina capaz de agir. Sobre um grande fundo confuso e místico, qual ele mostra e que tem todo o sentimentalismo das decadências - desde o [da] humildade até ao do dominio -, ergue-se a sua tripla tendência, que, ora por um lado, ora por outro, lança para a direita e para a esquerda apelos inúmeros a inúmera gente. Uns entram pela porta da sua tendência imperialista, outros pela da sua tendência mística, outros pela da sua tendência niveladora. E assim ele consegue realizar, como igualmente típicas, figuras tão aparentemente diversas como Filipe II de Espanha, S. Francisco de Assiz, Inácio de Loyola. Tem por força a plasticidade das coisas fracas
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Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
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