A primeira noção clara que tive deste meu terrível desinteresse…
A primeira noção clara que tive deste meu terrível desinteresse por mim mesmo e por o que antigamente considerara mais meu, foi quando um dia, estando longe de casa, ouvi um rebate de fogo que me pareceu na freguesia. Ocorreu-me que fosse em minha casa, onde, aliás, não fora. E, ao passo que, antigamente, um pavor de se poderem perder meus manuscritos me haveria tomado toda a alma, notei, com pasmo duplo, que a possibilidade de o fogo ser em minha casa me deixara indiferente, quase feliz na ideia de que, destruídos esses manuscritos, se me simplificaria a vida. Antigamente, a perda dos meus manuscritos, de toda a obra fragmentária mas cuidada da minha vida, reduzir-me-ia à loucura; já agora a contemplava como um incidente casual do meu destino, não como um golpe mortal que aniquilasse, por lhe aniquilar as manifestações, a minha própria personalidade.
Comecei então a compreender como por fim cansa de tudo o esforço contínuo da perfeição inatingível, e compreendi os grandes místicos e os grandes ascetas, que reconhecem na alma a futilidade da vida. Que iria de mim naqueles papéis escritos? Antes, eu diria «tudo»; hoje diria, ou «nada», ou «pouco», ou «uma coisa estranha».
Tornara-me objectivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara ou me perdera.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 199.«A Educação do Estóico»