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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

Raciocino (...) — tudo será fácil...

Raciocino (...) — tudo será fácil e (…), porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, (...), namoro a filha dele, cuja alma sou eu à janela da sua casa.

Limito-me, é claro, aos meus conhecimentos. Não posso criar um matemático. Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais. Mas não vale a pena. Basto-me assim.

Pulverização da personalidade. Não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos nem o meu carácter.

Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substituí os meus sonhos por mim próprio. Cada pessoa é apenas o sonho de si próprio. Eu nem isso sou.

Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar.

Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou uma personagem de dramas meus.

O esforço é inútil mas entretém. O raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas, sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade ou que me doa que nunca chegue; sem querer resolver um problema, que veja nunca resolvo; sem que (...). Posso amar sem me recusarem ou me traírem, ou me aborrecerem. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida: depende apenas do meu poder em tornar o sono vívido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.

Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supera, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos... e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber se fatigaria de fazê-lo. Quero sonhar-me rei... Num acto brusco quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá...Porque eu cheguei a esta vitória sobre o sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoo, ao trazê-la nítida, a vida cuja vaga ordem apenas resolveram.

Eu sou totalmente incapaz de idear convenientemente as Idades Médias de diversas épocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir... Tenho-os tão preciosos que eles excedem sempre o que eu espero deles São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço...

A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance e eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.

É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os (...) é que por uma (...) intuição eu lia... Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que foram as minhas.

Quando a sensação física chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do primeiro grau do sonho. Isto é, porque com sucesso sonhar combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas... O primeiro grau está assegurado. No caso do sensual, deverá ele [...] ter uma ejaculação qualquer com muitos desses [...].

Depois procurará trazer tudo isso para mental. A ejaculação no caso do sonho (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser senti-la sem se ter dado. O cansaço será ainda maior, mas o prazer é correspondentemente mais intenso.

No terceiro grau passa toda a sensação a ser mental. Aumenta o prazer e aumenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos sonhos lassos, a inteligência a vida e o amor é que ficam umbrosos e frouxos...

Chegando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.

O quarto grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto quando está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço individual em criar os romances, perturbaria a perfeita mentalização do gozo.

Terceiro grau.

Já entendida a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos por si.

Já aqui o cansaço é quase nulo mesmo mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza dotada de alma, sem forma — nem mesmo a da água que é a da vasilha que a contém.

Bem apontada esta (...) deixemos poder aparecer em nós, verso a verso desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos... nem isso será preciso. Poderemos criar em segunda mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escrevendo de uma maneira, outro poeta entretanto escreveria de outra...

Eu posso escrever de inúmeras maneiras diversas, [...] todas.

O mais alto grau do sonho é quando criado um quadro com personagens — vivemos todas elas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjuntas e interactivamente. É incrível o grau de despersonalização e de encorajamento do espírito a que isto leva e é difícil confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo...

Este é o único [...] final. Não há nele fé, nem um Deus.

Deus sou eu.

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

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"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.