A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la;
L. do D.
A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.
Como não te sonhar? Como não te sonhar?
Senhora das Horas que Passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis... — livra-me da minha mocidade.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa — livra-me da alegria e da felicidade.
— Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono — faze com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.
— Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo das horas passadas a sonhar — livra-me da religião, porque é suave, e da descrença porque é forte;
— Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, Silêncio entre prece e prece — enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.
Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas — ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão!...
(E) Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer (...)como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu!
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
- 255.