Final — E se acaso falo com alguém longínquo,
L. do D.
Final — E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faze o teu dever de mera taça. Cumpre o teu mister de ânfora inútil. Ninguém diga de ti o que o rio pode dizer das margens, que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar.
Que o teu génio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica. Não sejas nunca mais nada.
Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria um a religião sobre o (sonho de) amar-te.
És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver...
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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