Aqueles que, como o sr. Boutroux, abrem uma oposição entre a cultura alemã…
Aqueles que, como o sr. Boutroux, abrem uma oposição entre a cultura alemã e a cultura greco-romana, laboram em erro. Não vêem o que seja a cultura greco-romana realmente, sob a aparência falsa que lhe deu o humanismo moderno, vendo-a através das suas próprias, desvirtuadoras tendências. O característico principal da cultura clássica era a noção concreta da realidade, a subordinação do espírito individual à fenomenologia geral da Natureza. Ora a cultura alemã tem, precisamente, por tema a subordinação do indivíduo à realidade. Idêntica resulta, portanto, nos seus fundamentos, à cultura greco-romana.
O humanismo serviu-se da cultura greco-romana (da grega, primacialmente) como factor individualizante, não indo buscar a essa cultura seu principal e íntimo sentido, senão sua utilidade imediata para combater o que lhe parecia útil que se combatesse, o que era, no lance, o espírito da Igreja.
Não considero a cultura alemã, an sich, como o ideal da cultura que é precisa hoje. Acho-a viciada na sua origem por elementos claramente cristãos, quais os que lhe ficaram da infiltração kantista, centralizadora, no modo cristão, da realidade do mundo na alma humana.
Considero-a, porém, como um passo dado para essa cultura, pois que ela representa uma reacção nítida contra a atitude cristã.
Na frase-mestra de Treitschke, Freiheit durch Einheit, «a liberdade pela unidade», está entendida a útil evolução da nossa civilização outra vez para o eterno ideal grego. Primeiro assegurar a Unidade, para, através de ela, se poder elaborar seguramente a Liberdade. Esta fórmula do historiador tudesco aplica-se, eu bem sei, propriamente a fins germânicos. Mas de ela guardo a intuição, e deito fora a aplicação próxima e intencionada.
Unificar a civilização europeia contra o ideal cristão, para depois, quebrando-a, ela se quebrar tendo já no fundo a disciplina pagã.
Eu não admiro, em si, a cultura alemã, senão muito secundariamente. Mas admiro nela o passo preciso dado para a repaganização do mundo moderno; na derrota d'ela eu vejo, lastimando-me, falhada outra vez a recondução da cultura europeia para o ideal clássico, na sua realidade fundamental, que o cristismo fez que abandonássemos.
Não considero a cultura alemã útil como um fim, mas sim como um meio — meio para se poder chegar, embora dolorosamente e castigadamente, outra vez à cultura clássica. Não pensam assim os alemães, é certo. Nem o poderiam pensar. Não cabe no poder de previsão d'um povo o conhecer os destinos últimos da sua ideação para a transformação do grupo civilizacional a que pertence; só através d'uma ideia nacional essa obra se pode realizar. É a última ilusão, antes que a realidade chegue.
Era preciso unificar a Europa moderna para que ela pudesse querer cindir-se nas suas pequenas forças — reconstruindo assim a cidade-estado dos antigos —, e para que pudesse fazê-lo sem desorganizar profundamente as almas individuais.
Só através do domínio alemão da Europa eu podia sentir esperança no futuro da Europa. A derrota da Alemanha não é o fim da Europa, por certo; não o é proximamente, pelo menos. Mas é a falência da última tentativa, inconsciente talvez, para reconduzir a nossa civilização àquele ponto clássico d'onde ela não devia ter saído, e d'onde o cristianismo, como uma feiticeira, a desviou.
A Alemanha teve a segura intuição da sua missão espantosa. Errou-lhe o sentido último, como não podia deixar de o errar. Nenhum povo pode agir desinteressadamente, sabendo que o fim da sua acção será beneficiar a civilização geral, com desproveito de si-próprio, no que potência e império. Mas, sem chegar a este apuro, pode um povo ter nítida a noção de que tem de fazer tal coisa, que no fim nisso redundará; essa intuição teve a Alemanha contemporânea. Concebeu essa missão como uma missão imperialista nacional, estreitamente. Era fatal que assim fosse. A Grécia antiga, consciente como nenhum povo e proeminentemente culta, nunca teve com a esperada clareza a noção de que o seu papel civilizacional era de pura cultura, de pura libertação dos espíritos e não de domínio material. Caiu no imperialismo, finalmente, como toda a fraca humanidade tem de cair.
Por isto tudo eu, que sou um individualista, prezo a cultura alemã, e desejaria a sua vitória nas armas, ainda que fosse contra a minha própria pátria; pois que não vejo outro caminho aberto ao individualismo disciplinado, como o dos gregos, do que o do domínio da Europa por um povo forte, esmagador, que criasse, ao mesmo tempo que uma reacção contra o seu domínio (por onde se afirmariam vitalidades nacionais, e se conjugariam, formando uma Europa unida) uma reacção disciplinada e fecunda (que outra resultaria frouxa e sem resultado), e, também, uma reacção contra aquelas forças fracas do passado que conduziram ao n[osso] individualismo de hoje, débil, frágil, cristão.
Se me perguntardes que simpatia filosófica sinto pela cultura alemã, responder-vos-ei, que pouca. O meu ideal é pagão e clássico. Por isso me são obnóxias as culturas contemporâneas, tanto a germânica, como as outras. Nenhuma d'elas corresponde, senão em pequeníssimas e inutilizadas partes à cultura clássica que sigo. Mas, de todas as culturas contemporâneas, eu vejo que a alemã é aquela que abre caminho à passagem possível da cultura clássica. Raia n'ela a noção concreta da realidade substituindo a noção abstracta e idealista d'ela. É pouco, mas basta-me, para indicar que por ali é que é o caminho. O resto é anti-clássico, mas abre, como disse, o caminho à passagem do classicismo.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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