Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra...
L. do D.
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo ou mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida.
Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma acção qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe a dentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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