UMA CARTA
L. do D.
UMA CARTA
Há um vago número de muitos meses que me vê olhá-la constantemente, sempre com o mesmo olhar incerto e solícito. Eu sei que tem reparado nisso. E como tem reparado, deve ter achado estranho que esse olhar, não sendo propriamente tímido, nunca esboçasse uma significação. Sempre atento, vago e o mesmo, como que contente de ser só a tristeza disso... Mais nada... E dentro do seu pensar nisso — seja o sentimento qual seja com que tem pensado em mim — deve ter perscrutado as minhas possíveis intenções. Deve ter explicado a si própria, sem se satisfazer, que eu sou ou um tímido especial e original, ou uma qualquer espécie de qualquer coisa aparentado com o ser louco.
Eu não sou, minha Senhora, perante o facto de olhá-la, nem estritamente um tímido, nem assentemente um louco. Sou outra coisa primeira e diversa, como, sem esperança de que me creia, lhe vou expor. Quantas vezes eu segredava ao seu ser sonhado: faça o seu dever de ânfora inútil, cumpra o seu mister de mera taça.
Com que saudade da ideia que quis forjar-me de si eu percebi um dia que era casada! O dia em que percebi isso foi trágico na minha vida. Não tive ciúmes do seu marido. Nunca pensei se acaso o tinha. Tive simplesmente saudades da minha ideia de si. Se eu um dia soubesse este absurdo — que uma mulher num quadro — sim essa — era casada, a mesma seria a minha dor.
Possuí-la? Eu não sei como isso se faz. E mesmo que tivesse sobre mim a mancha humana de sabê-lo, que infame eu não seria para mim próprio, que insultador agente de minha própria grandeza, ao pensar sequer em nivelar-me com o seu marido!
Possuí-la? Um dia que acaso passe sozinha numa rua escura, um assaltante pode subjugá-la e possuí-la, pode fecundá-la até e deixar atrás de si esse rasto uterino. Se possuí-la é possuir-lhe o corpo que valor há nisso?
Que não lhe possui a alma?... Como é que se possui uma alma? E pode haver um hábil e amoroso que consiga possuir-lhe essa «alma».
(...) Que seja o seu marido esse... Queria que eu descesse ao nível dele?
Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a ideia de si! Temo-nos amado tanto, dentro dos meus sonhos? Mas mesmo aí, eu lhe juro, nunca me sonhei possuindo-a. Sou um delicado e um casto mesmo nos meus sonhos. Respeito até a ideia de uma mulher bela.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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