REGRESSO DOS DEUSES. Capítulo I
REGRESSO DOS DEUSES.
Capítulo I
Definição do conceito de civilização.(...)
A religião como o fenómeno social mais representativo. Provas de que o é.
Não importa como a religião nasce. Importa apenas o que é.
Determinação do conteúdo do conceito de religião. A religião é a manifestação de uma unidade de pensamento. É a fixação externa daquele fundo em que todos concordam que estão submetidos a condições civilizacionais idênticas. A religião exprime esse fundo comum supremamente. Pode exprimi-lo porque é vaga sempre, por isso que não é um fenómeno intelectual directo, porque é comum a todas as camadas sociais; porque abrange todas as manifestações da vida social.
Uma religião manifesta-se primordialmente, à análise, como uma metafísica, da qual, como de todas as metafísicas, instintivas ou conscientes, decorre uma ética, uma estética e uma sociologia, assim como, coexistindo com as realidades da vida social, dela decorra uma determinada prática social.
Determinação das espécies de metafísicas que há. A metafísica um dualismo e um monismo, dualismo pelo ponto de partida, monismo pela direcção, pelo próprio sentido íntimo de ser uma metafísica.
São três as maneiras de encarar o dualismo monisticamente: colocar a Realidade em um dos pontos, sendo o outro real mas inferior; colocá-la em um ponto que está fora de qualquer dos dois.
No primeiro campo, temos a doutrina que afirma o exterior uma ilusão, e real, e só real, o sujeito: é o idealismo, nas suas diversas formas; e temos a doutrina que afirma o sujeito irreal: é o materialismo propriamente dito.
No segundo campo, temos a doutrina que afirma ambos os pontos reais, mas o exterior como apenas passageiramente real: é o dualismo subjectivista; e a doutrina contrária, que afirma o sujeito real, mas não perenemente, com a realidade do objecto: é o dualismo objectivista.
No terceiro campo, temos a doutrina que afirma irreais tanto sujeito como objecto, colocando a realidade verdadeira fora deles: é o transcendentalismo, propriamente.
Estas cinco teorias abrangem toda a metafísica, cujos sistemas cabem por força em uma ou outra.
Se formos ver em que se manifesta a metafísica nas religiões, nós veremos o seguinte: o sujeito, para cada sujeito, é dado como um só, porque cada qual, de directamente subjectivo, conhece apenas o seu próprio espírito; e que o objecto é dado pela multiplicidade das coisas externas. Eu sou um; o mundo é muitos: eis a forma fundamental do pensamento.
Por isso vemos que uma mentalidade colectiva de tipo subjectivista exprimir-se-á pelo monoteísmo, ao passo que o politeísmo será a expressão natural de uma \ mentalidade colectiva de tipo objectivista.
Como nascem, porém, estas mentalidades colectivas diferentes? O que faz ser subjectivista uma, objectivista outra, mentalidade popular ou geral?
Partamos do nosso próprio estado de espírito: em que ocasiões é que somos subjectivistas, em que ocasiões objectivistas, naturalmente? Somos objectivistas, é claro, quando aplicamos aquelas faculdades do espírito que nos relacionam com a realidade externa; somos subjectivistas quando não empregamos essas faculdades, o que dá, pois que a paragem cerebral não existe na vida, a concentração sobre o nosso próprio espírito. As faculdades que agem sobre o exterior são a observação, pela qual conhecemos esse mundo, a atenção, por cuja aplicação o conhecemos competentemente, e a vontade, pela qual agimos sobre ele. As faculdades que trabalham interiormente só são a imaginação, pela qual substituímos o exterior por um falso-exterior, coisas supostas a coisas reais; a meditação, pela qual substituímos pensamentos a coisas na atenção; e a inibição, pela qual nos impedimos de tomar contacto com o exterior (a inibição, pela qual substituímos a acção sobre nós à acção sobre o mundo).
O monoteísmo é uma religião de decadência, porque, conquanto um indivíduo possa sem grande mal ser introvertido, um povo todo não o pode ser sem perder a noção verdadeira do mundo e da vida, a noção correcta deles, o que dá, como é de ver, a desadaptação e a decadência.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 237.