A diferença substancial entre o paganismo e os sistemas índios...
A diferença substancial entre o paganismo e os sistemas índios e cristista repercute-se, manifesta-se, como na metafísica e na ética, na estética também.
Um sistema religioso, como o cristista, em que tomam relevo os sentimentos íntimos de cada indivíduo, em que o interesse do espírito se concentra em seus próprios movimentos, não devia ter outra acção estética — pelo menos fundamentalmente — que não fosse a da expressão dos sentimentos íntimos, que não fosse a confissão da alma. O artista cristão busca, acima de tudo, exprimir o que sente . Nisto reside a substância da sua doutrina estética. Ela sofreu, é certo, em certos períodos, e mormente em o chamado Renascença, um correctivo pagão. Mas a pura estética cristista não é a estética pagã, cujo sentido em breve veremos; é a da expressão, substancialmente.
A estética da Índia é diversa, embora aparentada de longe com a cristista. Como o cristão, o índio se volta para dentro, e aplica a sua atenção ao seu próprio espírito. A maneira do pagão é, porém, diversa. O Nirvana é a ideia representativa da direcção da índole religiosa da Índia. Nela lemos claramente o que é essa índole, e em que difere da cristã. A introversão das actividades do espírito leva, no cristismo, à exaltação desumana da personalidade, no Hinduísmo, à sua desumana desvalorização (depressão). Buscam ambos aquilo a que chamam a união com Deus: um, porém, busca-a em um êxtase onde o espírito se transcende a si próprio em si; o outro em um êxtase onde se transcende a si próprio em Deus.
Na união com Deus o cristão encontra-se, o hindu perde-se. Os conceitos divergentes nascem da divergência das teorias. Para o cristão a alma individual é uma realidade absoluta; na verdade ele pensa, com o nosso Guerra Junqueiro:
nem Deus, tendo-as feito, é capaz de as matar!...
Para o índio a alma individual é uma das muitas ilusões daquela divisão [?] divina a que chamamos o mundo.
De aqui se vê qual deverá ser, e de facto é, a diferença entre a substância [?] da estética cristã e a estética hindu (oriental). Para o cristão a beleza está em tudo quanto claramente nos faz sentir a nossa personalidade; para o oriental em tudo quanto transcende a nossa personalidade.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 243.Regresso dos Deuses?