Assim estes pobres críticos do cristianismo o agridem com armas...
Assim estes pobres críticos do cristianismo o agridem com armas que são cristãs, por isso que são ilusões cristãs do paganismo. Tomam o epicurismo por paganismo inteiro. Outros, mais nobres, julgam que no estoicismo o paganismo está todo. Não em um, nem em outro, sistema se acha incluída a atitude metafísica que, a ambos, os subjaz (que de ambos é o substrato). O que é comum a toda a moral pagã é que, seja qual for, visa um fim humano, a organização da pessoa humana, não a transcendência dela. A moral pagã é portanto uma moral de orientação e de disciplina, ao passo que a moral cristã é uma moral de renúncia e de desapego. A moral epicurista é no fundo a tendência para a felicidade pela harmonização de todas as faculdades humanas — o que é, deveras, uma ideia de disciplina, pois que o é de coordenação. A moral estóica é uma moral de subordinação das qualidades inferiores do espírito às superiores, mas superiores e humanas; o auge do cristismo está no sacrifício e na dedicação à humanidade espiritual, o auge do estoicismo na disciplina de si próprio e na dedicação ao próprio destino, e, se à humanidade, à humanidade concebida civicamente. O estoicismo é a mais alta moral pagã porque é a moral pagã reduzida ao princípio abstracto que é a essência de todas as éticas do paganismo. A Disciplina é a única deusa ética dos estóicos; e é a disciplina, como dissemos, que é a base real das doutrinas éticas do paganismo.
Assim na doutrina ética nós vemos a mesma tendência para a limitação, função característica do objectivismo.
O que deu na prática este sistema pagão? A prática de qualquer civilização é a média perfeita entre o ideal religioso que, interpretando-lhe o substrato espiritual, a caracteriza e a fenomenologia social constante — isto é, as leis constantes de todas as sociedades.
Os estetas modernos, que afectam um paganismo porque julgam que não são cristãos, caem em um erro. Continuam sendo cristãos. São cristãos na sua moral quando a tenham, ou na sua imoral, quando a mostrem. Porque o que contrapõem ao cristismo não é a moral pagã, que é de disciplina e de harmonia; o que contrapõem ao cristismo é o nada, o não-cristismo, a incapacidade.
A moral cristã é a moral da fraqueza (?) e da incompetência, a metafísica do cristismo é a metafísica da falta de atenção e de concentração; a estética do cristismo é a estética do predomínio da sensibilidade sobre a inteligência. O cristismo é a inversão dos valores humanos. Não submergiu a sociedade, porque a sociedade tem, na sua própria constituição como tal, a maior defesa contra o cristismo. Não matou a vida humana. porque, para ser vida, ela tem que não deixar-se morrer. O cristismo nasceu na época da decadência romana. Ainda, na sua forma católica — a mais abjecta de todas, porque o protestantismo de certo modo impôs uma disciplina por via do seu latente paganismo nórdico — a religião cristã é uma religião da decadência romana. Quem vive dentro do cristianismo, vive ainda no império romano em decadência. Da sua origem o cristismo guarda os seus característicos. O que o berço dá a tumba o leva.
Para quê uma reconstrução pagã? Tudo depende se tomamos o cristismo por uma religião em si, ou por uma mera prolongação decadente do paganismo greco-romano. Se ele é, independentemente, uma religião, de nada serve uma reconstrução pagã, senão para deixar afixado nos muros da história um protesto contra os bárbaros vencedores. Mas se o cristianismo é uma mera decadência, uma reconstrução pagã vitalizará o corpo moribundo do paganismo subjacente.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 249.Regresso dos Deuses?