— Os sete círculos ínferos da sombria Visão de Alighieri.
— Os sete círculos ínferos da sombria Visão de Alighieri.
Digamos a frase decisiva e afirmadora. A Igreja Católica não deriva, não descende do Império Romano. A Igreja Católica é o Império Romano.
Assim, se o cristismo não é senão a extrema degeneração do paganismo greco-romano, a sua perversão a tal ponto, que nela desconhecemos a inversão dos seus princípios e a negação dos seus intuitos, isto significa, em todo o caso, que substrativamente existe este paganismo, que, deformado, errado ou desviado, ele todavia não morreu de todo. É ele que é tipicamente a nossa civilização. Onde ele aparece, recivilizamo-nos; quando desaparece, vem a rebarbarização.
Assim, nós vemos que a Renascença consegue o seu relativo vulto fincando-se sobre os elementos pagãos do catolicismo, subtraindo-os, mais ou menos, do cristismo superveniente. Ninguém dirá, se quiser acertar, que o poema de Alighieri é feito de outro modo, que não por um aproveitamento, meio instintivo, meio consciente, do paganismo católico, do paganismo sob o cristismo católico. O elemento monoteísta recede; com ele o elemento moralista esvai-se. Por isso a Reforma, ao mesmo tempo que é um prolongamento da Renascença (porque é uma continuação do esparcelamento do cristismo que na Renascenca começou) é a sua negação, pois que o vago dos espíritos nórdicos, incapaz de chamar a si deveras o paganismo subjacente no cristismo, chama a si a parte vaga do cristismo, o monoteísmo com o seu moralismo duro, e assim se contrapõe à tentativa pagã da Renascença. Assim se formou a Reforma.
Cinde-se o cristismo; começa a cindir-se. A primeira cisão foi anterior, o cisma do Oriente, em que a parte oriental e a ocidental da Europa começaram a definir-se. Aparece aí, de um modo vasto e vago, a aurora do princípio das nacionalidades.
Na Renascença, além de se separarem as nacionalidades, começam a acentuar-se os grupos de nações de que a nossa civilização é composta. Começa a haver um cristismo ibérico, um cristismo italiano-francês, um eristismo nórdico. Assim se definem, antes de propriamente como nações, os três grupos civilizacionais de que se compõe a civilização europeia — o nórdico, o neolatino e o ibérico. Definem-se religiosamente, como é de esperar, visto que, como se apontou, a religião é o fundamento representativo das civilizações. A separação entre nórdicos e neolatinos está lógica em uma consequência porventura directa das respectivas posições geográficas. Uns tinham por tradição representativa do modo dos seus espíritos a sombria e vaga mitologia nórdica, um pouco diferenciada de lugar para lugar, mas substancialmente a mesma. Outras tinham uma natural tendência para o cristismo politeísta da Igreja Católica. Haveria uma identidade neste sentido entre os neolatinos (franceses e italianos) e os ibéricos (nacionalidades ou pseudo-nacionalidades da nossa península), se a penetração árabe nesta não houvesse diferenciado a nossa psique ibérica
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 253.Regresso dos Deuses?