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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Coelho Pacheco

PARA ALÉM DOUTRO OCEANO

Num sentimento de febre de ser para além doutro oceano

Houve posições dum viver mais claro e mais límpido

E aparências duma cidade de seres

Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em

pureza e em nudez

Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter

A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro

Todos viviam na vida dos restantes

E a maneira de sentir estava no modo de se viver

Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho

A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser

E houve pasmos de toda a realidade ser só isto

Mas a vida era a vida e só era a vida

O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente

Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho

Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel

Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo

Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro

Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho

Como uma máquina untada movida por uma correia

E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham

Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu

Mas dizem que lhes doi a cabeça ou sentem tonturas

Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer

Como por exemplo a de que eles n„o sentem esse deslizar

E não pensam em que o não sentem

Neste salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas

São a forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras

Passeio o meu olhar materializado e destaco de escondido nas armaduras

Aquele segredo de alma que é a causa de eu viver

Se fito na panóplia o olhar mortificado em que há desejos de não ver

Toda a estrutura férrea desse arcaboiço que eu pressinto não sei porquê

Se apossa do meu senti-la como um clarão de lucidez

Há som no serem iguais dois elmos que me escutam

A sombra das lanças de ser nítida marca a indecisão das palavras

Dísticos de incerteza bailam incessantemente sobre mim

Oiço já as coroações de heróis que hão-de celebrar-me

E sobre este vício de sentir encontro-me nos mesmos espasmos

Da mesma poeira cinzenta das armas em que há sinais doutras eras

Quando entro numa sala grande e nua à hora do crepúsculo

E que tudo é silêncio ela tem para mim a estrutura duma alma

É vaga e poeirenta e os meus passos têm ecos estranhos

Como os que ecoam na minha alma quando eu ando

Por suas janelas tristes entra a luz adormecida de lá de fora

E projecta na parede escura em frente as sombras e as penumbras

Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa

E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos

Um rebanho de ovelhas é uma coisa triste

Porque lhe não devemos poder associar outras ideias que não sejam tristes

E porque assim é e só porque assim é porque é verdade

Que devemos associar ideias tristes a um rebanho de ovelhas

Por esta razão e só por esta razão é que as ovelhas são realmente tristes

Eu roubo por prazer quando me dão um objecto de valor

E eu dou em troca uns bocados de metal. Esta ideia não é comum nem banal

Porque eu encaro-a de modo diferente e não há relação entre um metal e outro objecto

Se eu fosse comprar latão e desse alcachofras prendiam-me

Eu gostava de ouvir qualquer pessoa expor e explicar

O modo como se pode deixar de pensar em que se pensa que se faz uma coisa

E assim perderia o receio que tenho de que um dia venha a saber

Que o pensar eu em coisas e no pensar não passa duma coisa material e perfeita

A posição dum corpo não é indiferente para o seu equilíbrio

E a esfera não é um corpo porque não tem forma

Se é assim e se todos ouvimos um som em qualquer posição

Infiro que ele não deve ser um corpo

Mas os que sabem por intuição que o som não é um corpo

Não seguiram o meu raciocínio e essa noção assim não lhes serve para nada

Quando me lembro que há pessoas que jogam as palavras para fazerem espírito

E se riem por isso e contam casos particulares da vida de cada um

Para assim se desenfastiarem e que acham graça aos palhaços de circo

E se incomodam por lhes cair uma nódoa de azeite no fato novo

Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo

Na arte de cada operário vejo toda uma

geração a esbater-se

E por isso eu não compreendo arte nenhuma e vejo essa geração

O operário não vê na sua arte nada duma geração

E por isso ele é operário e conhece a sua arte

O meu físico é muitas vezes causa de eu me amargurar

Eu sei que sou uma coisa e porque não sou diierente de uma coisa qualquer

Sei que as outras coisas serão como eu e têm de pensar que eu sou urna coisa comum

Se portanto assim é eu não penso mas julgo que penso

E esta maneira de me eu acondicionar é boa e alivia-me

Eu amo as alamedas de árvores sombrias e curvas

E ao caminhar em alamedas extensas que o meu olhar afeiçoa

Alamedas que o meu olhar afeiçoa sem que eu saiba como

Elas são portas que se abrem no meu ser incoerente

E são sempre alamedas que eu sinto quando o pasmo de ser assim me distingue

Muitas vezes oculto-me sensações e gostos

E então elas variam e estão em acordo com as dos outros

Mas eu não as sinto e também não sei que me engano

Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver

Eu não sinto a poesia não porque não saiba o que ela é

Mas porque não posso viver figuradamente

E se o conseguisse tinha de seguir outro modo de me acondicionar

A condição da poesia é ignorar como se pode senti-la

Há coisas belas que são belas em si

Mas a beleza íntima dos sentimentos espelha-se nas coisas

E se elas são belas nós não as sentimos

Na sequência dos passos não posso ver mais que a sequência dos passos

E eles seguem-se como se eu os visse seguirem-se realmente

Do facto deles serem tão iguais a si-mesmo

E de não haver uma sequência de passos que o não seja

É que eu vejo a necessidade de nos não iludirmos sobre o sentido claro das coisas

Assim havíamos de julgar que um corpo inanimado sente e vê diferentemente de nós

E esta noção por ser admissível de mais seria incómoda e fútil

Se quando pensamos podemos deixar de fazer movimentos e de falar

Para que é preciso supor que as coisas não pensam

Se esta maneira de as ver é incoerente e fácil para o espírito?

Devemos supor e este é o verdadeiro caminho

Que nós pensamos pelo facto de o podermos fazer sem nos mexermos nem falar

Como fazem as coisas inanimadas

Quando me sinto isolado a necessidade de ser uma pessoa qualquer surge

E redemoinha em volta de mim em espirais oscilantes

Esta maneira de dizer não é figurada

E eu sei que ela redemoinha em volta de mim como uma borboIeta em volta de uma luz

Vejo-lhe sintomas de cansaço e horrorizo-me quando julgo que ela vai cair

Mas de nunca suceder isso acontece eu estar às vezes isolado

Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona

E outras que se não impressionam

Mas o arranhar das paredes é sempre igual

E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre este sentir

Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas

E quando todos pensem igual duma coisa é porque ela é diferente para cada um

A memória é a faculdade de saber que havemos de viver

Portanto os amnésicos não podem saber que vivem

Mas eles são como eu infelizes e eu sei que estou vivendo e hei-de viver

Um objecto que se atinge um susto que se tem

São tudo maneiras de se viver para os outros

Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são os espaços

Depois de comer quantas pessoas se sentam em cadeiras de balanço

Ajeitam-se nas almofadas fecham os olhos e deixam-se viver

Não há luta entre o viver e a vontade de não viver

Ou então — e isto é horroroso para mim — se há realmente essa luta

Com um tiro de pistola matam-se tendo primeiro escrito cartas

Deixar-se viver é absurdo como um falar em segredo

Os artistas de circo são superiores a mim

Porque sabem fazer pinos e saltos mortais a cavalo

E dão os saltos só por os dar

E eu se desse um salto havia de querer saber porque o dava

E não os dando entristecia-me

Eles não são capazes de dizer como é que os dão

Mas saltam como só eles sabem saltar

E nunca perguntaram a si-mesmos se realmente saltam

Porque eu quando vejo alguma coisa

Não sei se ela se dá ou não nem posso sabê-lo

Só sei que para mim é como se ela acontecesse porque a vejo

Mas não posso saber se vejo coisas que não aconteçam

E se as visse também podia supor que elas sucediam

Uma ave é sempre bela porque é uma ave

E as aves são sempre belas

Mas uma ave sem penas é repugnante como um sapo

E um montão de penas não é belo

Deste facto tão nu em si não sei induzir nada

E sinto que deve haver nele alguma grande verdade

O que eu penso duma vez nunca pode ser igual ao que

eu penso doutra vez

E deste modo eu vivo para que os outros saibam que vivem

Às vezes ao pé dum muro vejo um pedreiro a trabalhar

E a sua maneira de existir e de poder ser visto é sempre diferente do que julgo

Ele trabalha e há um incitamento dirigido que move os

seus braços

Como é que acontece estar ele trabalhando por uma vontade que tem disso

E eu não esteja trabalhando nem tenha vontade disso

E não possa ter compreensão dessa possibilidade?

Ele não sabe nada destas verdades mas não é mais feliz do que eu com certeza

Em áleas doutros parques pisando as folhas secas

Sonho às vezes que sou para mim e que tenho de viver

Mas nunca passa este ver-me de ilusão

Porque me vejo afinal nas áleas desse parque

Pisando as folhas secas que me escutam

Se pudesse ao menos ouvir estalar as folhas secas

Sem ser eu que as pisasse ou sem que elas me vissem

Mas as folhas secas redemoinham e eu tenho de as pisar

Se ao menos nesta travessia eu tivesse um outro como toda a gente

Uma obra prima não passa de ser uma obra qualquer

E portanto uma obra qualquer é uma obra prima

Se este raciocínio é falso não é falsa a vontade

Que eu tenho de que ele seja de facto verdadeiro

E para os usos do meu pensar isso me basta

Que importa que uma ideia seja obscura se ela é uma ideia

E uma ideia não pode ser menos bela do que outra

Porque não pode haver diferença entre duas ideias

E isto é assim porque eu vejo que isto tem de ser assim

Um cérebro a sonhar é o mesmo que pensa

E os sonhos não podem ser incoerentes porque não passam de pensamentos

Como outros quaisquer. Se vejo alguém olhando-me

Começo sem querer a pensar como toda a gente

E é tão doloroso isso como se me marcassem a alma a ferro em brasa

Mas como posso eu saber se é doloroso marcar a alma a ferro em brasa

Se um ferro em brasa é uma ideia que eu não compreendo

O descaminho que levaram as minhas virtudes comove-me

Compunge-me sentir que posso notar se quiser a falta delas

Eu gostava de ter de minhas virtudes gostosas que me

preenchessem

Mas só para poder gozar o possuí-las e serem minhas essas virtudes

Há pessoas que dizem sentir o coração despedaçado

Mas não entrevistam sequer o que seria de bom

Sentir despedaçarem-nos o coração

Isso é uma coisa que se não sente nunca

Mas não é essa a razão porque seria uma felicidade sentir o coração despedaçado

Num salão nobre de penumbra em que há azulejos

Em que há azulejos azuis colorindo as paredes

E de que o chão é escuro e pintado e com passadeiras de juta

Dou entrada às vezes coerente por demais

Sou naquele salão como qualquer pessoa

Mas o sobrado é côncavo e as portas não acertam

A tristeza das bandeiras crucificadas nos entre-vãos das

portas

É uma tristeza feita de silêncio desnivelada

Pelas janelas reticuladas entra a luz quando é dia

Que entorpece os vidros das bandeiras e recolhe a recantos montões de negrume

Correm às vezes frios ventosos pelos extensos corredores

Mas há cheiro a vernizes velhos e estalados nos recantos dos salões

E tudo é dolorido neste solar de velharias

Alegra-me às vezes passageiramente pensar que hei-de morrer

E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina

O meu corpo há-de derreter-se para líquidos espantosos

As feições desfar-se-ão em vários podres coloridos

E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo

Muito suja e muito cansada a pestanejar

1915

Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 19??.

 - 81.

Texto para o nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.