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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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António Mora

A metafísica é uma arte porque...

António Mora:

Introdução à [...]

A metafísica é uma arte porque tem as características da obra de arte: a subjectividade (isto é, o ser a expressão de um temperamento), a incerteza da base em que assenta, e a, directa, inutilidade prática.

O pensamento deve partir daquilo que encontre irredutível. Ora, o irredutível será aquilo que ele seja incapaz de pensar, de analisar. Incapaz de analisar mesmo falsamente, incapaz de por um lado ou por outro, com mãos, alavanca ou tenaz, levantá-lo ou movê-lo.

Parece que esse irredutível devia ser o próprio pensamento. Mas não é, porque o pensamento analisa-se. Tão pouco deve ser o conteúdo desse pensamento, porque o que contém, ele sempre poderá elaborar, analisar, porque pode, pelo menos, compará-lo com outras coisas também nele contidas. E assim certa ideia, pelo menos relativa, ele formará dessa coisa.

Onde está então o irredutível? Procuremos por uma análise progressivamente destruidora, chegar a ele.

O facto imediato do nosso pensamento, o próprio pensamento, é, ao darmos fé dele, uma coisa que se nos apresenta como tendo um conteúdo, como um facto que uma análise radical, indo ao fundo e à essência, parte em dois elementos. (Já isso o pensa não-irredutível). Esses dois elementos quais são? Superficialmente pensando vimos que a eles se pode chamar: o pensamento e o conteúdo do pensamento. Com a característica imperfeição das análises superficiais, induziu-nos esta, de início, num erro, pelo menos aparente ou temporário.

Se por pensamento entendemos o conjunto de ideias, sensações, (...) que em nós existem, o pensamento fica sendo simplesmente o seu próprio conteúdo e é impossível encontrar uma coisa a que propriamente se chama pensamento. Impossível ?

Se a nossa análise abarcou aqui, que belo sistema arquitectado se não pode erguer sobre esta base! Mas a continuação do pensamento leva a mais escuros caminhos. Ponhamos de parte a visão errada para não perdermos o fio da nossa análise.

Caracteriza todo o elemento pertencente àquilo, a que propriamente chamámos o conteúdo do pensamento, uma coisa — o ser nosso. Isto é, os meus «pensamentos»: são meus, não de outros. Assim eles me aparecem.

Que sentido comporta esse fenómeno? E é ele o elemento irredutível que procurávamos? [...] O que entendo eu com dizer que o pensamento é meu?

O primeiro ponto do problema está, evidentemente, em saber porque digo eu que o meu pensamento é meu? Como sei eu que ele é meu? Porque tenho o que se chama «consciência» do meu pensamento ? Então todos aqueles fenómenos chamados «inconscientes» que descubro em mim?

Posso sobre o caso fabricar várias hipóteses que explicam:

(1) Que tenho realmente consciência de todos esses elementos mas que essa consciência é a tal ponto pequena com respeito a alguns desses fenómenos que, derivando a minha atenção para os fenómenos que mais vividamente ocupam a consciência, os mínimos, a ela são praticamente imperceptíveis.

(2) Que a individualidade transcende a consciência e, suponha-se, tem duas formas, uma consciente, outra inconsciente, isto, por uma razão qualquer a investigar; essa razão seria qualquer coisa como, que fôssemos compostos de espírito e matéria, ou fôssemos unos nessa dupla forma, sendo porém conscientes no que parte da alma e inconscientes no que parte da matéria, até que chegamos à alma em plena matéria. Neste género deveria ser a hipótese fundamental que pretendesse ser explicativa.

Para poder afirmar que, além da Consciência e da Matéria há, pelo menos um outro facto — a relação entre eles, porque se entende que a matéria é dada à Cons[ciênci]a e a Con[sciênci]a é c[onsciênci]a da Matéria — tínhamos que pensar (1) que é legítima a aplicação da ideia de relação à Consciência e à Matéria no que, empregar-se pode, em relação uma com a outra; (2) que conhecemos suficientemente a C[onsciênci]a e a Matéria para podermos afirmar deles mais alguma coisa do que que existem; (3) que — ao contrário do que é evidente — provaremos a vida de relação não nasce da matéria puramente, das relações entre as coisas, sendo, por isso mesmo, inaplicável fora da matéria. As ideias são «acção» da Matéria sobre a C[onsciênci]a.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

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