Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Bernardo Soares

Não fizeram, Senhor, as vossas naus viagem mais primeira

Não fizeram, Senhor, as vossas naus viagem mais primeira que a que o meu pensamento, na derrota deste livro, conseguiu. Cabo não dobraram, nem praia viram mais afastada, tanto da audácia dos audazes como da imaginação dos por ousar igual aos cabos que dobrei com a minha meditação, e às praias que, com o meu (...), fiz aportar o meu esforço.

Por vosso início, Senhor, se descobriu o Mundo Real, por meu o Mundo Intelectual se descobrirá.

Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também na viagem do meu pensamento tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto que está no fundo das coisas, há horrores que passar, que os homens do mundo não imaginam, e medos que ter que a experiência humana não conhece, é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar do que a senda abstracta para o vácuo do mundo.

Apartados do uso dos seus lares, exuis do caminho das suas casas, viúvos para sempre da [...] de a vida ser a mesma, chegaram por fim os vossos emissários, vós já morto, ao extremo oceânico da Terra. Viram, no material, um novo céu e uma terra nova.

Eu, longe dos caminhos de mim próprio, cego da visão da vida que amo (…)

Cheguei por fim, também, ao extremo vazio das coisas, à borda imponderável do limite dos entes, à porta sem lugar do abismo abstracto do Mundo.

Entrei, senhor, essa Porta. Vaguei, senhor, por esse mar. Contemp1ei, senhor, esse invisível abismo.

Ponho esta obra de Descoberta suprema na invocação do vosso nome português, criador de argonautas.

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

 - 214.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.