Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo...
L. do D.
Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o (distraidamente) confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e (...) de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo (alongar em fúteis todas as (...) horas). Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de acção.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão.
Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer e compreendê-lo, o que é aliás impossível — que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado-divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar. E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver pária e alheadamente.
Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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