Atinge o extremo doloroso em Omar Khayyam,
Atinge o extremo doloroso em Omar Khayyam, ou Fitzgerald por ele, o persa, o príncipe do Tédio, mestre do desconsolo e da desilusão.
Nem amor até que aquela mesma Sàki, que aqui e ali aparece nos rubbayat, não é como mulher que aparece, senão, e somente, como a moça que serve vinho e canta para dizer-nos que nada tem que nos dizer.
Este ideal do tédio, já, porém, o havia exposto o Salomão do Eclesiastes, a imagem e símbolo da sabedoria.
E outro não rei mas imperador o exprime despedindo-se (...).
O sonho, o [...], os ideais tudo do estômago translato (em que o estômago passa para a cabeça) são impotências do idealizar que não formas do ideal. Além disso não são arte, nem a produzem ou apreciam ou podem produzir.
Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em uma matemática expressiva as sensações decorativas da minha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim associações de ideias, de imagens, de palavras — tudo lúcido e difuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou cair, me enfloram no chão, nem, até, se um som de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de falência, de sofrimento, não conseguem senão dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjectivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as letras da minha tinta da caneta são um mapa absurdo de sinais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas, em aqueles mesmos mares doirados de violeta que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.
- 89.