[Carta a Fernando Pessoa - 20 Fev. 1935]
2-2-1935
Exmo. Sr.
FERNANDO PESSOA
c/o Café da Arcada
Praça do Comercio
LISBOA
Meu caro Fernando Pessoa Por ignorância da sua morada tenho adiado de dia para dia uma obrigação de amizade.
Devia há muito já ter lhe agradecido o seu livro, mas não me ocorria meio de lhe fazer chegar a carta às mãos, até que hoje me ocorreu confiá-la ao pessoal do café da Arcada.
Tarde lhe respondo mas Você desculpa. Gostei mais de receber o seu livro do que se a minha fábrica me mandasse um automóvel ainda que fosse com dedicatória. Exagero muito pouco.
Eu compreendi e gostei sempre dos seus versos.
Desde o tempo de Orpheu e da «Renascença» (talvez desta Você já se nem lembre apesar de para ali ter colaborado) sei de cor versos seus daquele tempo; recorda-se:
Adagas, cujas jóias, velhas galas
Opalesci amar me entre mãos raras
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e aquelas quadras:
Ó sinos da minha aldeia
Dolentes na tarde calma…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Desde que há tempos, parece-me que no Diário de Lisboa, antes de conhecer o seu livro, encontrei o «Mostrengo», decorei-o também e tenho o recitado a inúmeras pessoas. Alguns cretinos aos primeiros versos sorriem e mofam, mas por mais cretinos que sejam no fim ficam calados com cara de parvos, nem eles sabem porquê, mas eu sei e por isso o admiro a Você.
A propósito: não correu uma primeira versão em que em lugar de Mostrengo Você escrevera
Morcego? Mas gosto mais da do livro exactamente porque não precisa a forma e dá nos melhor a ideia do grandioso e do grotesco, roçando-se.
Se tiver um minuto para me escrever duas linhas ou se quiser telefonar me gostava tanto de saber se Você tem mais alguma coisa publicada em periódicos, para melhor conhecer sobre si o que, afora a «Mensagem» tenha produzido em verso.
Um grado abraço do velho amigo
J. Coelho Pacheco
Correspondência Inédita . Fernando Pessoa. (Organização e notas de Manuela Parreira da Silva.) Lisboa: Horizonte, 1996.
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