O MAJOR
L. do D.
O MAJOR
Nada há que tão intimamente revele, que tão completamente interprete a substância do meu infortúnio nato como o tipo de devaneio que, na verdade mais acarinho, o bálsamo que com mais íntima frequência escolho para a minha angústia de existir. O resumo da essência do que desejo é só isto: dormir a vida. Quero de mais à vida, para que a possa desejar ida; quero de mais a não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado importuno.
Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, com a casa quieta, porque os donos saíssem ou se calem, fecho as vidraças da minha janela, tapo-as com as pesadas portas; [...] num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda, e prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um outro mais sóbrio, o conviva lento que ficou sem razão.
Suponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por onde subiu até àquele meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o major que me suponho não é posterior a nenhuma vida que tivesse; não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquele viver daquele hotel provinciano, cansado já de conversas de anedotas que teve com os parceiros na demora.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
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