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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Barão de Teive

Depois - reparou - a própria inteligência, que ela sem dúvida tinha,

Depois - reparou - a própria inteligência, que ela sem dúvida tinha, produz um espírito de justiça e de lealdade... E trair aquele homem simples, sem interesse mas digno de amizade, seria para ela uma coisa quase criminal, uma coisa indigna não da pessoa dela, mas da sua inteligência. Era coisa possível só com a imaginação, mas ficando na imaginação. As mesmas qualidades de clareza de inteligência, que a levavam a devanear para longe daquele marido real, a levavam a respeitar, não a ele, mas a sua relação com ele. O homem banal vencia porque era banal. Poderia, sim, acontecer que um amor violento arrastasse aquela mulher, de repente, para fora dos eixos lentos da vida quotidiana e seria; mas esse amor ou teria que ter vindo mais cedo, ou que vir muito mais tarde, e mais cedo seria cedo, e mais tarde seria tarde; ou haveria de o causar alguém não inteiramente diferente daquele marido ocupador - alguém fogoso ou estranho, mas banal também, para que o passo do dever para a aventura se desse facilmente, e não fosse o trânsito da vida para o sonho ou de uma vida para outra vida, coisa que a própria dificuldade convertia em nada, nascendo a inércia da inércia.

Os seus olhos eram negros e um pouco tristes. Na curva de meditação meio-sensual da sua boca sem sensualidade havia um desdém velado como um esquecimento. O nariz fino dava um tom vagamente aristocrático, segundo essas convenções de caras, à expressão geral do rosto de que directamente não participava. Tinha cabelos escuros de criança crescida, e punha neles as mãos, para os compor, com um gesto já um pouco diferente. As suas mãos eram longas, não extremamente belas, mas boas; tinham uma grande doçura e uma elegância sem sabedoria.

Tudo estava perdido, que nunca estivera para poder ser ganho.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

 - 205.

«Daphne e Chloe».