Não somos, na verdade, neopagãos, nem pagãos novos.
Não somos, na verdade, neopagãos, nem pagãos novos. Neopagão, ou pagão novo, não é termo que tenha sentido. O paganismo é a religião que nasce da terra, da natureza direitamente — que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira. Por sua própria natureza de natural, ele pode aparecer e desaparecer, mas não mudar de qualidade. «Neopagão» é um termo que tem tanto sentido como «neopedra» ou «neoflor». O paganismo aparece com a saúde, desaparece com o adoecimento, do género humano. Pode estiolar-se, como uma flor se estiola, e morrer, como morre uma planta. Mas não toma a forma de outra coisa, nem é susceptível de formas diferentes da sua substância.
Que se designassem, a si mesmos, neopagãos aqueles cristãos rebeldes, como Pater e Swinburne, que nada tinham de pagãos, senão o desejo de o ser — conceda-se porque não é falta de razão que se dê um nome impossível a uma coisa absurda. Mas nós, que somos pagãos, não podemos usar um nome que indique que o somos como «modernos», ou que viemos «reformar», ou «reconstruir» o paganismo dos gregos. Viemos ser pagãos. Renasceu em nós, o paganismo. Mas o paganismo que renasceu em nós é o paganismo que sempre houve — a subordinação aos deuses como a justiça da Terra para consigo mesma.
Um estudioso do paganismo não é um pagão. Um pagão não é humanista: é humano. O que o pagão de melhor grado aceita ao cristismo é a fé popular nos milagres e nos santos, o rito, as romarias. É a parte «rejeitada» do Cristismo que ele mais prontamente aceitaria, se alguma coisa cristã aceitasse. Aquele «paganismo» moderno, ou «neopaganismo», que não compreende os dias santos, mas sim os poetas místicos, nada tem de comum com o paganismo. Porque o pagão aceita uma procissão sem desagrado mas vira as costas à mística de Santa Teresa de Jesus. A interpretação cristã do mundo causa-lhe náuseas; mas uma festa de igreja, com luzes, flores, cantos e depois a romaria — estas coisas ele aceita como boas, ainda que numa coisa má, porque estas coisas são da verdade humana, e são a interpretação pagã do Cristianismo.
O pagão tem simpatia pela superstição cristã, porque o homem que não é supersticioso não é homem; mas não sente simpatia pelo humanitarismo, porque quem é humanitário não é homem.
Para o pagão cada coisa tem o seu génio ou ninfa, cada coisa é uma ninfa cativa ou uma dríade apanhada pelo olhar; por isso cada objecto tem para ele uma espantosa realidade imediata, e com cada coisa ele está em convívio quando a vê, e em amizade, quando lhe toca.
O homem que vê em cada objecto uma outra coisa qualquer, que não seja isto, não pode ver, amar ou sentir esse objecto. O que dá a cada coisa o valor de ter sido criada por «Deus», dá-lhe o valor por o que ela não é, mas por o que ela lembra. Os seus olhos estão postos nessa coisa, e alhures o seu pensamento.
O panteísta, para quem cada coisa vale pela sua participação no todo, por igual vê uma coisa para pensar noutra, por igual olha para não ver. Não pensa nela, mas na continuidade dela com o resto do mundo. Como pode amar uma coisa quem a ama por um princípio externo a ela? A primeira regra do amor, e a última, é que a coisa amada seja amada por ser essa coisa e não outra, e amada por ser objecto de amor, não por haver «razão» para amá-la.
O mero materialista ou racionalista, para quem cada coisa é maravilhosa pelo trabalho que nela teve a «Natureza», e a energia latente que nela se agita, para que vive [?] — o sistema planetário que cada átomo nela inclui — este homem não ama essa coisa, nem a vê, este por igual, quando olha uma coisa, pensa em outra, que é a composição [?] dessa coisa. Quando vê uma coisa, medita a decomposição dela. Por isso nunca um materialista fez arte, nunca um materialista, ou um racionalista, olhou para o mundo. Entre ele e o mundo o misticismo da ciência interpôs o seu véu, o microscópio, e ele caiu na realidade como num poço. Para ele cada coisa se tornou [. ] uma grade, por onde espreita a sua atenção íntima; como para o panteísta ela é uma grade ou janela para o Todo; e para o criacionista uma grade através da qual ele olha para o Deus [...]
Místicos cristãos, sonhador panteísta, materialista e homem da «razão», para eles todos o mundo é apenas o seu pensamento [... ]
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 286.Regresso dos Deuses