A lucidez, a sobriedade, a concisão não são postulados,
A lucidez, a sobriedade, a concisão não são postulados, são corolários do classicismo pagão. O pagão é naturalmente conciso, sóbrio e lúcido, mas apenas porque é tudo isso por ser outra coisa de que isso é a manifestação mais natural. O essencial, porém, é a harmonia, a unidade e a coordenação da obra. Píndaro não é lúcido. Heraclito é conhecido por «o obscuro». De Aristófanes não se pode dizer que tivesse um grande respeito pela simplicidade ou pela sobriedade, sobretudo na estruturação verbal.
Importa que esta distinção se faça, para que se não confunda, não já a essência com os seus atributos, porque os atributos são, afinal, a essência vista de outro modo; mas a causa de uma manifestação com as condições em que ela se manifesta (mais naturalmente).
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Há ideias, por exemplo as vagas, que não comportam uma apresentação lúcida. Há sentimentos, por exemplo os desmarcados, que não admitem uma manifestação sóbria. Há pontos em que nem é útil, nem possível ser conciso, como aqueles em que a explanação é de um assunto complexo, ou a demonstração de um assunto controverso, onde as objecções hão-de ser previstas e respondidas, e as diversas formas da interpretação revistas e classificadas.
Eu não defendo a falta de lucidez, a falta de sobriedade, ou a falta de concisão. Quero, porém, indicar que essas qualidades, sendo naturais no pagão, não são essenciais nele. Era preciso que não houvesse confusão neste respeito.
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De que modo, porém, é que se pode pensar em aplicar o paganismo à sociedade moderna? Respondamos: que razões há para que ele se não aplique? Só pode haver três; examinemo-las. A primeira é que, por uma variedade de causas (económicas, políticas e outras) não há semelhança entre a sociedade antiga e a moderna, e a fé, e os princípios dela resultantes, que se aplicavam às sociedades antigas, não podem ter aplicação nas sociedades modernas. A segunda é que o cristismo, ele e os seus atributos, são a nossa tradição; podem ser decadentes, podem ser maléficos, podem ser prejudiciais, mas existem: criaram um estado de espírito seu, que se torna incompatível com a aplicação do paganismo. A terceira razão é que (...)
Quais são as causas actuantes que podem ser concebidas como dificultantes do paganismo? Uma é o cosmopolitismo criado pela causação económica actual; outra o imperialismo gerado pela existência de colónias, quando por mais não fosse; outra a importância tomada pelo proletariado na nossa época. Repare-se que cuidadosamente distinguimos entre os efeitos produzidos por causação económica natural e directa; e os produzidos pelo cristismo, que já devidamente estudámos no decurso deste opúsculo. Assim, uma coisa é o cosmopolitismo do espírito cristão, sobretudo manifestado pela religião católica, pelo cristismo em geral; outra o cosmopolitismo que provém do facto, puramente laico, digamos, da extensão e multiplicação de relações e correlações comerciais e industriais da época presente. Do mesmo modo, uma coisa é o imperialismo cristista, que lhe vem (como vimos) da sua herança romana, e outra coisa o imperialismo que decorre das descobertas, da posse de colónias, sobretudo as que se não admitir que recebam, num governo autónomo, uma preparação para a nacionalidade independente. E identicamente, são duas coisas diversas o espírito igualitário do cristismo, essénio na sua origem, decadente romano na sua posse das almas, e o espírito igualitário que o regime de concorrência criou na nossa época mercantil.
Por ora, na análise da objecção tirada das qualidades naturais da nossa época, é das segundas, das citadas condições, que tratamos.
Temos, pois, a hipótese que o paganismo não possa ajustar-se ao cosmopolitismo económico contemporâneo Mas o paganismo não se ajusta a ele: corrige-o dando força às nacionalidades.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 289.Regresso dos Deuses