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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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António Mora

Os tempos novos, com o aumento da erudição extensa...

Os tempos novos, com o aumento da erudição extensa e aquela maior relação com os países antigos distantes, pela qual essa erudição compreende mais culturas ou é levada a compreendê-las, trouxeram um novo período à história da vida religiosa. Abandonou-se aquela restrita crítica do Cristianismo, que consistira principalmente na análise racional, por vezes estulta e pobre, dos seus dogmas, e na crítica social, por vezes estreita e fria das suas doutrinas. Aumentou o respeito pelas religiões, reconhecidas como gerais na humanidade, mas o crédito dado a esta ou àquela religião diminuiu com a comparação com as outras. Antes, procurava-se fazer aluir a metafísica do Cristianismo, ou a moral do Cristianismo, por uma crítica directa delas; hoje, essa metafísica e essa moral são aluídas, insensivelmente, indirectamente, por outro processo: a verificação de que há muitas outras metafísicas religiosas, às quais a do Cristianismo não sobreleva em sentido nenhum racional, muitas outras éticas que a do Cristianismo não supera em ternura, em beleza ou em efeito. Antes, o homem europeu ou cria ou descria, porque, confrontando somente com o Cristianismo, ou cria nele ou em parte dele ou em nada. Hoje, o homem europeu, conhecedor de cinco ou seis sistemas religiosos, pode descrer do Cristianismo para crer em qualquer dos outros sistemas; ou, não crendo em nenhum, tem todavia uma visão mais larga da importância da religião entre a humanidade, uma mais larga tolerância daqueles mesmos abusos e crueldades que quase se consideravam próprios do Cristianismo, por isso que, como religião, só propriamente o Cristianismo, ou o hebraismo anterior, se conhecia. Esta emergência de diversos sistemas religiosos teve um resultado particular: o erguer o paganismo dos gregos e dos romanos à superfície; e ele passou de um fenómeno morto do passado a um fenómeno religioso a ser considerado, na ordem lógica, em paralelo com o Cristianismo. Pode dizer-se que o paganismo deixou de ser anterior ao Cristianismo, tomando lugar ao lado dele, e de todas as mais religiões estudadas, num panteão sem jerarquias. Desde esse momento passou a ser possível um repensamento do paganismo; e, como o paganismo foi a antiga fé das culturas que animam a nossa civilização, passou a ser possível não só repensar, mas até reconstruir, o paganismo. Uma nova era pagã se tornou possível.

É de uso corrente, sobretudo entre os sequazes das seitas crististas, empregar a palavra «pagão» como termo descritivo de ausência de religião, ou como reles e baixo materialismo na vida. Importa, antes de mais nada, que repudiemos essa aplicação do termo, em comparação com a qual poderíamos, lembrados da Inquisição e das guerras religiosas, descrever o Cristianismo como a religião da crueldade e do sangue, ou, lembrados das festas de igreja e das romarias, como a religião da alegria animal sem devoção nem caridade. Longe de designar uma ausência de religião, ou um baixo materialismo, o paganismo designa um sistema religioso completo, e o baixo materialismo e, mais ainda, a falta de religião não podem ser descritivos de uma religião qualquer. É só quando considerado em relação absurda com a espiritualidade cristã que o paganismo parece um baixo materialismo, mas nem faltou o que se chama espiritualidade ao paganismo, senão nos seus baixos exemplos — de que há iguais no Cristianismo —, nem a espiritualidade é muito acentuada nas populações cristãs. Compara-se o que o paganismo foi com o que o Cristianismo queria ser; comparação cómoda, mas pela qual se prova que qualquer coisa é superior a outra qualquer coisa.

O paganismo nem é materialista nem é estreito: é simplesmente o conceito do universo que estabelece, acima de tudo, a existência de um Destino implacável e abstracto, a que homens e deuses estão igualmente sujeitos; abaixo desse destino, a raça dos deuses e a dos homens, distintas em grau mas não em qualidade,

ambas compostas por seres imperfeitos, ambas eivadas de injustiça e de capricho. O paganismo é isto, e disto derivam todas as fórmulas pagãs: a vulgar, que oferece sacrifícios aos deuses e tenta propiciá-los, pois que, não sendo melhores que nós, são todavia mais poderosos; a chamada epicurista, que, considerando que os deuses não curam de nós e o Destino é inumano e indivino, acha que a vida não merece outra consideração que não um humilde estudo de como a poderemos passar com menos dor — pelo prazer intenso e breve, ou pelo longo equilíbrio dos prazeres —; e a chamada estóica, que acha que ao homem compete, como homem, submeter-se ao Destino e aos Deuses; como deus virtual, ter o orgulho intelectual de conhecer a necessidade dessa submissão. Pode alegar-se que o fundo do paganismo é triste; e deveras o é. Mas o pagão é um objectivo: vê as coisas e aceita-as, nem julga que serve de alguma coisa o criar ilusões para se julgar feliz. Foi o Cristianismo que trouxe à civilização ocidental a necessidade de substituir o universo. Não seremos injustos se dissermos que o Cristianismo foi, na civilização europeia, a primeira forma conhecida do ópio ou da cocaína.

Reconhecer que não sabemos nada, salvo que há uma lei em tudo — lei que se manifesta alheia às nossas dores e aos nossos prazeres, além do bem e do mal; que somos, abaixo dessa lei, joguetes nas mãos de forças superiores que não conhecem perfeição moral, como nós a não conhecemos entre nós; que, visto que só o universo objectivo nos foi dado, é nesse universo e em conformação com esse universo que devemos viver a nossa vida, pois, se outras formas de vida pudermos ter a seu tempo as teremos ou nos serão dadas — nisto consiste a religião pagã, ou, se se preferir, a filosofia do paganismo

Supõem alguns que o paganismo é mais alegre que o Cristianismo, outros que ele é mais humano. Ambas as suposições são falsas: o paganismo é simplesmente mais objectivo e mais lógico que o Cristianismo. O Cristianismo é forçosamente mais alegre do que o paganismo, porque o Cristianismo promete uma felicidade eterna, e o paganismo não promete nada; e o Cristianismo é forçosamente mais humano que o paganismo, pois o Cristianismo considera o homem como um valor eterno, ao passo que o paganismo o não considera senão como um episódio da terra. '

O erro nasce, talvez, da grande atenção que o paganismo presta ao corpo humano, por uma parte; e, por outra parte, da insistência das sociedades pagãs na vida cívica. Mas a atenção dada ao corpo humano é tão somente um critério objectivo, a atenção dada à única certeza exterior humana que se possui. Mas a atenção dada à vida cívica nada tem que ver com a «fraternidade» ou a «solidariedade» em que hoje se fala — produtos do Cristianismo — mas tão somente significa o conhecimento de que o homem nasce em sociedade e tem de se conformar — não por interesse, não por amor, não por dever mesmo — com a existência dessa sociedade. O paganismo não é um humanismo: é uma aceitação.

[ms.]: A ferocidade materialista de muitos factos [?] do nosso tempo não é paganismo nem sequer [?] virtualmente: é simplesmente anti-Cristianismo.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Regresso dos Deuses?