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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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António Mora

A emergência demasiado fácil das personalidades secundárias;

A emergência demasiado fácil das personalidades secundárias; a excessiva estimulação da revelação, por cada indivíduo, da sua individualidade específica, que, salvo quando é grande, nada interessa a ninguém que se revele; a adopção de um código de sociabilidade pelo qual o que vale em cada indivíduo é o que tem de diferente dos outros, e não o que tem de comum com eles — fenómenos são estes que caracterizam bem a doença extrema da época.

Certas coisas, que contribuíram para este agravamento do já mórbido estado psíquico criado pelo cristianismo, antes se intensificarão no futuro, que esboçarão, sequer, um aparecimento. A enorme concorrência comercial, a complicação de internacionalismos, a crescente necessitação de corpos de operários especialistas, que desenvolvem um orgulho rigidamente incompatível com a sua posição nas sociedades, e que, por serem operários, vão suscitar esse orgulho doentio em outros, de mais baixos misteres — tudo isto contribui para que se mantenha, íntegra e indesfeita, a decadência, já normal, da época. Conseguimos esse desiderato de alienado — a normalização da anormalidade. Obtivemos, com isso, a vantagem de tornar a vida mais agitadamente interessante a um bom número de pessoas que em uma sociedade bem ordenada, não existiriam, propriamente falando, individualmente. Mas essa vantagem individual, e por isso transitória, pagamo-la com a fixação, paralela, da incapacidade de criar, com a normalização, conexa, da impotência de grandes ideias, a inapetência para grandes fins.

Nós realizamos, modernamente, o sentido preciso daquela frase de Voltaire, onde diz que, se os mundos são habitados, a terra é o manicómio do Universo Somos, com efeito, um manicómio, quer sejam ou não habitados os outros planetas. Vivemos uma vida que já perdeu de todo a noção da normalidade, e onde a rigidez vive por uma concessão da doença.

Vivemos em doença crónica, em anemia febricitante O nosso destino é o de não morrer por nos termos adaptado ao estado de (perpétuos) moribundos.

Que pode ter com uma época destas um espírito da raça dos construtores, uma alma filha das grandes verdades do paganismo? Nada, salvo a repulsa espontânea, o desprezo reflectido. Somos, assim, nós que somos os únicos a discordar da decadência, compelidos a tomar uma atitude que é, de sua natureza, decadente também. Uma atitude de indiferença é uma atitude decadente, e nós somos obrigados a uma atitude de indiferença pela incapacidade de nos adaptarmos a um meio como este.

Não nos adaptamos, porque os sãos se não adaptam a meio mórbido. Não nos adaptando, somos mórbidos. Neste paradoxo, nós, os pagãos, vivemos. Não temos outra esperança, nem outro remédio.

Aceito como tal esta atitude nossa, mas não aceito o modo como a aceita Ricardo Reis. Quero que sejamos indiferentes para com uma época que nada pode querer de nós, e sobre a qual em nada podemos agir. Mas não quero que se cante essa indiferença como coisa boa de per si. É isso que faz Ricardo Reis. Por esse ponto, longe de tornar-se indiferente às correntes da época, integra-se em uma delas, que é a decadente. Essa indiferença, é já uma adaptação ao meio. É já uma concessão.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Regresso dos Deuses