Em que casos que a transformação dos imperialismos envolve uma decadência?
Império
Em que casos que a transformação dos imperialismos envolve uma decadência? Vejamos.
Toda a transformação de imperialismo pode ser produzida por três circunstâncias: (1) o desenvolvimento natural desse imperialismo; (2) o aparecimento de circunstâncias civilizacionais, isto é, exteriores (conforme possível) ao desenvolvimento do imperialismo nacional, que levem a nação imperialista a transformar o seu imperialismo, para se adaptar a essas condições; (3) as duas coisas conjuntas, isto é, uma transformação imperialista resultante tanto do desenvolvimento do próprio imperialismo como do aparecimento de circunstâncias externas no sentido desse desenvolvimento. (Porque, no segundo caso, trata-se de circunstâncias externas, ou indiferentes ao sentido do natural desenvolvimento, potencial ou real, do imperialismo, ou contrárias a ele.)
O resultado é, nos três casos, diferente, como é de imaginar.
É evidente que, onde se trate do natural desenvolvimento dum imperialismo, não se pode tratar de uma decadência. Parece que aqui se esqueceram as circunstâncias civilizacionais, que existem sempre. O facto, porém, é que se não esqueceram. Mas quando se fala do puro desenvolvimento do imperialismo, é evidente que se entende que as circunstâncias exteriores são no sentido desse imperialismo, de modo a podermos considerar, se quisermos, esse imperialismo isoladamente.
Porque o segundo caso envolve referência a circunstâncias externas que provoquem um imperialismo a transformar-se, sem que ele necessariamente siga esse sentido.
No terceiro caso trata-se de circunstâncias externas que provoquem um imperialismo a desviar-se de um sentido já tomado, quer por evolução directa, quer por transformação, já, desse sentido original do imperialismo.
Suponha-se uma época civilizacional subordinada à ideia imperialista de domínio; tal é, sempre, a primeira época, que é a militar, das civilizações. Todo o imperialismo de cultura que apareça nesta época terá, para viver, que se adaptar ao meio civilizacional. Como “meio civilizacional” quer dizer, neste caso, imperialismo de domínio, esse imperialismo de cultura terá que se tornar imperialismo de domínio para poder agir, para poder, mesmo, existir de certo modo. Quanto mais puro imperialismo de cultura for, mais desgraçado será nessa época. Assim se explica o desgraçado estado da Itália durante o seu grande período, o da Renascença, desde o fim da Idade Média. Imperialismo de cultura, nítido e quase absoluto, a sua existência num período de imperialismo de domínio levou-a à desunião, à submissão ao estrangeiro apto a dominar, quer porque tivesse um imperialismo de domínio (como a Espanha), quer porque simplesmente não tendo imperialismo nenhum, fosse contudo gente militar, como ao tempo era natural, sobretudo em quem não estivesse “estragado” pela sua superioridade, qual a italiana, de possuir um imperialismo de cultura.
O outro imperialismo de cultura do tempo, o português, vingou mais porque a orientação cultural do imperialismo português era outra - não já artística, mas científica, pois que era a das descobertas. Mas viu-se frente a frente com uma tremenda combinação de circunstâncias. Primeiro, tinha que se adaptar ao imperialismo de domínio do tempo. Faltavam-lhe, para que isso se pudesse fazer bem, algumas condições, como o número de gente precisa para tentar tal adaptação, a prática de processos militares favoráveis ao imperialismo de domínio (a acção guerreira anterior em Portugal tinha sido defensiva apenas, quer contra os mouros, quer contra os reinos vizinhos). Outras condições possuía - a unidade nacional (que congrega no esforço os indivíduos duma nação), o hábito guerreiro, não propriamente temperamental na Raça, mas educado através da atitude defensiva constante. O pior foi que, iniciando a época ultramarina da civilização europeia, Portugal criou o imperialismo de expansão, a que teve fatalmente que tentar adaptar-se, para o que lhe faltava a primeira e a essencial condição - o número de gente precisa para isso, para não falar na nenhuma necessidade que tinha de vazar os seus indivíduos em qualquer parte fora do país. Assim, Portugal viu-se a braços com a necessidade de uma adaptação dupla; um império construído sobre tão frágeis bases não podia durar muito tempo. O imperialismo de domínio, ao tempo lema civilizacional, favorecia contra Portugal o reino de Castela, adaptado por natureza a esse género de imperialismo; se bem que a decadência desta depois o fizesse poder-se livrar.
Uma nação chega ao seu auge de grandeza quando realiza plenamente o seu imperialismo específico. Assim o auge de grandeza da Itália foi sob a Renascença, pois que então, ainda que em circunstâncias não inteiramente favoráveis ao seu bem-estar, realizou plenamente a sua missão civilizacional, que era a de expandir cultura pela Europa, de dominar pelo espírito. A Alemanha, imperialismo de domínio, chegou ao seu auge no século XIX, quando conseguiu o imperialismo unificador, grau mais alto do imperialismo de domínio. (Agora, forçada pelas circunstâncias a adaptar-se a um imperialismo de expansão, dá-se nela uma transformação imperialista.) (Resultados?) A Inglaterra (outro imperialismo de domínio, como as suas ancestrais tendências mostram, pois que, contra toda a lógica nacional, teve durante tempo sob seu jugo parte da França) teve o seu auge quando, sob Cromwell, realizou, qual a Alemanha no século extinto, o seu pleno imperialismo unificador, se bem que unificador mais à força do que no caso germânico. A sua ulterior expansão e nítida prática do imperialismo de domínio tem em passar a ser imperialismo expansivo. O caso da Alemanha prova-o. Mas a Alemanha contemporânea, em vez de transformar o seu imperialismo de domínio em imperialismo expansivo, quis mantê-lo através do imperialismo de expansão, o que envolve fatalmente resultados diversos e consequências que, é de prever, sejam o que forem temporariamente, darão mau resultado no fim de tudo.
Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.
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