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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Cartas a João Gaspar Simões - 11 Dez. 1931]

Apartado 147.

Lisboa, 11 de Dezembro de l93l.

Meu querido Gaspar Simões:

Muito obrigado pela sua carta, que acabo de rece­ber, e pela página do jornal de Málaga. Não faz mal não ter vindo na Presença 33 o trecho do guarda--livros ou o soneto do Álvaro de Campos; ainda bem que veio a tra­dução do Hino a Pã. Essa, sim, é que me comprometeria se estivesse ausente. E porquê zangar-se comigo por ter dado ao Descobrimento colaboração extensa? Estou pronto a dá-la de igual extensão à Presença. Em um e outro caso considero, porém, a índole da publicação. Não julgo justo enviar-lhe colaboração que vá absorver-lhe três páginas, sobretudo devendo a Presença entregar o melhor e maior do seu espaço aos poetas e prosadores mais jovens, intercalando apenas os da minha idade por amizade para connosco, aplauso nosso para convosco e enchimento de intervalos.

Feitas estas considerações antepreliminares, e que são a resposta à sua carta , vou ver se consigo fazer a crítica ao seu livro Mistério da Poesia; incluirá a crí­tica ao seu estudo a meu respeito, visto que é inserto no livro, apesar de eu lha ter prometido há já muito tempo. Deve v. compreender, antes de mais nada, que vou fazer a crítica assim mesmo, escrevendo corrente e directamente à máquina a que estou sentado, sem pro­curar fazer literatura, ou frases, ou quanto não surja espontaneamente no decurso mecânico de escrever. Gomo não trouxe comigo o seu livro, terei que indicar em vez de citar, onde haja (se directamente houver) razão para isso. Aviso isto para que v. não veja um vago propósito onde há somente não ter trazido o livro.

De há muito que tenho uma alta opinião do seu talento em geral e das suas qualidades de crítico em particular. Quero que, antes de mais e acima de tudo, reconheça isto, e que isto é a minha opinião fundamen­tal. O que porventura se manifeste de discordância no seguimento desta carta atinge tão-somente os acidentes e os pormenores. Prova-lhe, aliás, este meu conceito da sua inteligência o facto – que talvez não tenha elemen­tos para notar – de que uso para consigo das palavras «admiração» e «admirador», que não costumo distri­buir ao acaso; «apreço» é o até onde vou onde não posso, a bem comigo, ir mais longe.

A meu ver, O Mistério da Poesia marca, na evolu­ção do seu espírito e da expressão dele, um estádio in­termédio entre Temas e um livro seu futuro. O Mistério da Poesia é essencialmente – a meu ver, sempre – um livro de estádio intermédio: é mais profundo e mais confuso que Temas. O Gaspar Simões cresceu mental­mente – cresce-se mentalmente até aos 45 anos – e está atravessando uma fase de uma doença do crescimento. Sente a necessidade de explicar mais, e mais profunda­mente, do que fez em Temas, mas, em parte, não atin­giu ainda o comando dos meios de aprofundamento, e, em parte, busca aprofundar pontos da alma humana que não haverá nunca meios para aprofundar. De aí – sem­pre, a meu ver – o que de febril, de precipitado, de ofe­gante estorva a lucidez substancial de certas observações, e priva outras, centralmente, de lucidez.

À parte o que vejo nisto de uma simples manifesta­ção de evolução íntima, creio que se entrega um pouco mais do que deveria às influências e sugestões do meio intelectual europeu, com todas as suas teorias procla­mando-se ciência, com todos os seus talentosos e há­beis proclamando-se e proclamados génios. Não o acuso de não ver isto; na sua idade nunca isto se vê. Pasmo hoje – pasmo com horror – do que admirei – sincera e inteligentemente – até aos 30 anos, no passado e no (então) presente da literatura internacional. Comigo isto deu-se tanto com a literatura como com a política. Pasmo hoje, com vergonha inútil (e por isso injusta) de quanto admirei a democracia e nela cri, de quanto julguei que valia a pena fazer um esforço para bem da entidade inexistente chamado «o povo», de quão since­ramente, e sem estupidez, supus que à palavra «humani­dade» correspondia uma significação sociológica, e não a simples acepção biológica de «espécie humana».

Entre os guias que o induziram no relativo labi­rinto para que entrou, parece-me que posso destacar Freud, entendendo por Freud ele e os seus seguidores. Acho isto absolutamente compreensível, não só pelas ra­zões gerais acima expostas, mas pela, particular, de que o Freud é em verdade um homem de génio, criador de um critério psicológico original e atraente, e com o poder emissor derivado de esse critério se ter tornado nele uma franca paranóia de tipo interpretativo. O êxito europeu e ultra-‑europeu do Freud procede, a meu ver, em parte da originalidade do critério; em parte do que este tem da força e estreiteza da loucura (assim se formam as religiões e as seitas religiosas, compreendendo nestas, porque o são, as de misticismo político, como o fas­cismo, o comunismo, e outras assim); mas principal­mente de o critério assentar (salvo desvios em alguns sequazes) numa interpretação sexual. Isto dá azo a que se possam escrever, a título de obras de ciência (que por vezes, de facto, são), livros absolutamente obscenos, e que se possam «interpretar» (em geral sem razão nenhuma crítica) artistas e escritores passados e pre­sentes num sentido degradante e Brasileira do Chiado assim ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizacional contemporânea.

Compreenda-me v. bem: não quero com isto sequer supor que seja este último pormenor do Freudismo o que fez, a v., passes hipnóticos. Mas foi este pormenor que criou o vasto interesse no Freudismo em todo o mundo, e que, portanto, fez a publicidade do sistema. Foi por um processo idêntico que, tendo o Junqueiro derivado a sua celebridade do fenómeno extraliterário de atacar a Igreja Católica (em que intimamente cria) e os «burgueses» (de cuja classe era excessivo orna­mento), nós, no meu tempo, o passámos a admirar lite­rariamente, e ainda que não concordássemos com qual­quer daqueles dois elementos que haviam criado a cele­bridade pela qual o líamos e admirávamos.

Ora, a meu ver (é sempre «a meu ver»), o Freu­dismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade inde­finida da alma humana. É estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade, pois nada se re­duz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica. É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos para três elementos importantíssimos na vida da alma, e portanto na interpretação dela: (1) o subconsciente e a nossa consequente qualidade de animais irracionais; (2) a sexualidade, cuja importância havia sido, por di­versos motivos, diminuída ou desconhecida anterior­mente; (3) o que poderei chamar, em linguagem minha, a translação, ou seja a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente irrelacionados com elas ou eles.

Já antes de ter lido qualquer coisa de ou sobre Freud, já antes, até, de ouvir falar nele, eu tinha pes­soalmente chegado à conclusão marcada (1) e a alguns resultados dos que inclui sob a indicação (3). No capí­tulo (2) tinha feito menos observações, dado o pouco que sempre me interessou a sexualidade, própria ou alheia – a primeira pela pouca importância que sempre dei a mim mesmo, como ente físico e social, a segunda por melindre (adentro da minha própria cabeça) de me intrometer, ainda que interpretativamente, na vida dos outros. Não tenho lido muito do Freud, nem sobre o sis­tema freudiano e seus derivados; mas o que tenho lido tem servido extraordinariamente – confesso – para afi­nar a faca psicológica e limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico. Não precisei do Freud (nem ele, que eu saiba, me esclareceria nesse pormenor) para saber distinguir a vaidade do orgulho, nos casos em que podem confundir-se, por meio de manifestações em que essas qualidades surgem indirectamente. Não precisei também do Freud para, no próprio campo da indica­ção (2), conhecer, pelo simples estilo literário, o pede­rasta e o onanista, e, adentro do onanismo, o onanista praticante e o onanista psíquico. Os três elementos cons­titutivos do estilo do pederasta, os três elementos cons­titutivos do estilo do onanista (e a divergência, em um deles, entre o praticante e o psíquico) – para nada disto precisei de Freud ou dos freudianos. Mas muitas outras coisas, neste capítulo e nos outros dois, de facto Freud e os seus me esclareceram: nunca me havia ocor­rido, por exemplo, que o tabaco (acrescentarei «e o álcool») fosse uma translação do onanismo. Depois do que li neste sentido, num breve estudo dum psicanalista, verifiquei imediatamente que, dos cinco perfeitos exem­plares de onanistas que tenho conhecido, quatro não fumavam nem bebiam, e o que fumava abominava o vinho.

O assunto obrigou-me a cair no sexual, mas foi para exemplificar, como v. compreende, e para lhe dizer quanto, criticando embora e divergindo, reconheço o poder hipnótico dos freudismos sobre toda criatura inteligente, sobretudo se a sua inteligência tem a feição crítica. O que desejo agora acentuar é que me parece que esse sistema e os sistemas análogos ou derivados devem por nós ser empregados como estímulos da ar­gúcia crítica, e não como dogmas científicos ou leis da natureza. Ora o que me parece é que v. se serviu deles um pouco neste último sentido, sendo portanto corres­pondentemente arrastado por o que há de pseudocien­tífico em muitas partes desses sistemas, o que conduz à falseação; por o que há de audaz em outras partes, o que conduz à precipitação; e por o que há de abusivamente sexual em outras, o que conduz a um rebaixa­mento automático, sobretudo perante o público, do au­tor criticado, de sorte que a explicação, sinceramente buscada e inocentemente exposta, redunda numa agres­são. Porque o público é estúpido? Sem dúvida, mas o que faz o público, público, que é o ser colectivo, por isso mesmo o priva da inteligência, que é só individual. A Ro­bert Browning, não só grande poeta, mas poeta intelec­tual e subtil, referiram uma vez o que havia de indiscutí­vel quanto à pederastia de Shakespeare, tão clara e cons­tantemente afirmada nos Sonetos. Sabe o que Browning respondeu? «Então ele é menos Shakespeare!» (If so the lesse Shakespeare he). Assim é o público, meu querido Gaspar Simões, ainda quando o público se chame Browning, que nem sequer era colectivo.

Nestas considerações, feitas em tom mental de con­versa solitária, e assim transmitidas à rapidez da má­quina, vai a maior parte da crítica que tenho que fazer, adversamente, ao Mistério da Poesia. Elas versam, para falar pomposamente, um dos aspectos metodológicos do seu livro. Mas há nele também elementos de pressa excusada e de precipitação crítica a que qualquer ques­tão de método é alheia. Se v. confessadamente não tem os elementos biográficos precisos para ajuizar do que poderia ser a alma do Sá-Carneiro, porque se baseia na falta de elementos para formar um juízo? Tem v. a cer­teza, só porque eu o digo e repito, que tenho saudades da infância e que a música constitui para mim – como direi? – o meio natural estorvado da minha íntima ex­pressão? E repare que cito o estudo sobre o Sá-Carneiro, que, dada a sua falta de elementos, é admirável de espí­rito crítico, e o estudo a meu respeito que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir.

Concretizo. A obra de Sá-‑Carneiro é toda ela atra­vessada por uma íntima desumanidade, ou, melhor, inu­manidade: não tem calor humano nem ternura humana, excepto a introvertida. Sabe porquê? Porque ele perdeu a mãe quando tinha dois anos e não conheceu nunca o carinho materno. Verifiquei sempre que os amadrasta­dos da vida são falhos de ternura, sejam artistas, sejam simples homens; seja porque a mãe lhes falhasse por morte, seja porque lhes falhasse por frieza ou afasta­mento. Há uma diferença: os a quem a mãe faltou por morte (a não ser que sejam secos de índole, como o não era Sá-Carneiro) viram sobre si mesmos a ternura pró­pria, numa substituição de si mesmos a mãe incógnita; os a quem a mãe faltou por frieza perdem a ternura que tivessem e (salvo se são génios da ternura) resul­tam cínicos implacáveis, filhos monstruosos do amor natal que se lhes negou.

Concretizo mais, agora comigo. Nunca senti sauda­des da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido directo da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que eu saiba ou repare, só a falta de dinheiro (no pró­prio momento) ou um tempo de trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir. Tenho, do passado, somente saudades de pessoas idas, a quem amei; mas não é a saudade do tempo em que as amei, mas a saudade delas: queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje tivessem, se até hoje tivessem vivido. O mais são atitudes literárias, sentidas intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos quer as assine Fernando Pessoa. São suficientemente represen­tadas, no tom e na verdade, por aquele meu breve poema que começa: «Ó sino da minha aldeia...». O sino da mi­nha aldeia, Gaspar Simões, é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos, hoje do Directório, e a casa em que nasci foi aquela onde mais tarde (no segundo andar; eu nasci no quarto) haveria de instalar-se o Directório Republi­cano. (Nota: a casa estava condenada a ser notável, mas oxalá 4.º andar dê melhor resultado que o 2.º).

Depois destas concretizações, ou coisa parecida, de­sejo regressar (se ainda tiver cabeça, pois já estou cansado) a um ponto metodológico. A meu ver (cá estão as três palavras outra vez), a função do crítico deve concentrar-se em três pontos: (1) estudar o artista exclusivamente como artista, e não fazendo entrar no estudo mais do homem que o que seja rigorosamente preciso para explicar o artista; (2) buscar o que poderemos chamar a explicação central do artista (tipo lí­rico, tipo dramático, tipo lírico elegíaco, tipo dramático poético, etc.); (3) compreendendo a essencial inexpli­cabilidade da alma humana, cercar estes estudos e estas buscas de uma leve aura poética de desentendimento. Este terceiro ponto tem talvez qualquer coisa de diplo­mático, mas até com a verdade, meu querido Gaspar Simões, há que haver diplomacia.

Nada disto, creio, precisa ser esclarecido, salvo, talvez, o que indiquei como (2). Prefiro – até para abre­viar – explicar por um exemplo. Escolho-me a mim mesmo, porque é quem está aqui mais perto. O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a desper­sonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo. Do ponto de vista humano – em que ao crítico não com­pete tocar, pois de nada lhe serve que toque – sou um histeroneurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inte­ligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qual­quer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipó­tese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, cons­truindo na emoção uma pessoa inexistente que a sen­tisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir.

Agora vou parar. Vou reler esta carta, fazer quais­quer emendas que forem precisas, e enviar-lha. Além disso, sou instantemente solicitado a acabar de escrever à máquina por um amigo meu, ainda mais bêbedo do que eu, que acaba de chegar e não estima embebedar-se sozinho. O «vou reler esta carta» quer, pois, dizer, que a vou reler logo, ou amanhã. Não deverei fazer emendas, salvo as do que saiu errado entre mim e a máquina. Se v. achar qualquer ponto mal esclarecido, diga, que eu direi. E v. não esqueceu, é claro, que o que aí vai é feito sem preparação nenhuma – atirado pelas páginas fora com a rapidez com que a máquina pode ceder ao pensamento decorrente.

Não, não esqueci que não referi o que haverá pos­sivelmente de errado no seu conceito do meu entendi­mento emotivo da música. Saltei este pormenor porque não sei nada a respeito dele. Mas essa vontade de mú­sica é outra das graças do meu espírito dramático. É conforme as horas, os locais, e a parte de mim que esteja virada a fingir para os locais e as horas.

Nem esqueci, é claro, que, para trás, nesta carta, escrevi qualquer coisa sobre «afiar a faca psicológica» e «limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico». Registo, com orgulho, que pratiquei, falando de Freud, uma imagem fálica e uma imagem iónica; assim sem dúvida ele o entenderia. O que concluiria, não sei. Em qualquer caso, raios o partam!

E agora estou, definitivamente, cansado e sedento. Desculpe o em que as expressões tenham falhado às ideias e o que as ideias tenham roubado à mentira ou à indecisão.

                Fernando Pessoa.

P. S. – Houve um ponto da sua carta a que não respondi ou me referi. É o que trata da nota do Des­cobrimento sobre Camilo Pessanha.

Quero referir-me simplesmente à influência que O Pessanha pudesse ter tido sobre o Sá-Carneiro. Não teve nenhuma. Sobre mim teve, porque tudo tem influência sobre mim; mas é conveniente não ver influência do Pessanha em tudo quanto, de versos meus, relembre o Pessanha. Tenho elementos próprios, naturalmente se­melhantes a certos elementos próprios do Pessanha; e certas influências poéticas inglesas, que sofri muito an­tes de saber sequer da existência do Pessanha, actuam no mesmo sentido que ele.

Mas quanto ao Sá-Carneiro... Eu conhecia, de cor, quase todos os poemas do Pessanha, por mos ter várias vezes dito o Carlos Amaro. Comuniquei-os ao Sá-‑Car­neiro, que, como é de supor, ficou encantado com eles. Não vejo, porém, que tenham influenciado o Sá-Carneiro em qualquer coisa. Uma grande admiração não implica uma grande influência, ou, até, qualquer influência. Tenho uma grande admiração por Camões (o épico, não o lírico), mas não sei de elemento algum camoniano que tenha tido influência em mim, influenciável como sou. E isto por uma razão precisamente igual à que explica a não influência de Pessanha sobre Sá-Carneiro. É que o que Camões me poderia ensinar, já me fora ensinado por outros. A exaltação e sublimação do instinto de pátria são fenómenos inensináveis em substância: ou temos naturalmente o sentimento patriótico, ou o não temos; ou temos a capacidade de exaltar e sublimar os nossos sentimentos, ou a não temos. (E, à parte isto, o sentimento patriótico é uma das coisas mais corren­tes em todas as literaturas, sendo, aliás, a sublimação construtiva do ódio, que é tão necessário à existência como o amor – a outra coisa igualmente corrente em todas as literaturas). E a construção e amplitude do poema épico, tem-as Milton (que li antes de ler os Lusíadas), em maior grau que Camões.

Ora Sá-Carneiro tinha em si mesmo, ou de outras influências, tudo quanto o Pessanha lhe poderia dar, quando primeiro ouviu, como ele diz, «dos seus versos». Isto explica, ao mesmo tempo, a não influência e a grande admiração.

Muito seu,

               F P.

11-12-1931

Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).

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